Análise e Comentários dos 10 Poemas Fundamentais de Fernando Pessoa


Escrito por Carolina Marcello

Fernando Pessoa (1888-1935) é um dos maiores autores da língua portuguesa e é especialmente conhecido pelos seus heterônimos. Entre eles destacam-se Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Bernardo Soares, que são as principais criações desse autor.

O poeta, uma figura chave do Modernismo, criou inúmeros poemas por meio de heterônimos. Além disso, também assinou versos com o seu próprio nome. Sua extensa lírica segue atual e merece ser relembrada a todo o momento.

Abaixo selecionamos alguns dos mais lindos poemas escritos pelo autor português. Que possam todos desfrutar de uma boa leitura!

1. Um Poema Retilíneo de Álvaro de Campos

Os versos de Fernando Pessoa são mundialmente reconhecidos e, em especial, o Poema em Linha Reta é o mais celebrado. Ainda hoje, muitos se identificam profundamente com esta extensa obra.

Ao lermos os versos, percebemos como o heterônimo critica a sociedade e se distancia dos que o cercam. Este trecho, contido em um poema longo escrito entre 1914 e 1935, nos ajuda a entender melhor essa posição.

Ao ler essas palavras, sentimo-nos chamados a refletir sobre as máscaras sociais, a falsidade e a hipocrisia que tomam conta do mundo moderno. O eu-lírico confessa a sua incapacidade de se ajustar a este contexto baseado nas aparências e nos convida a pensar sobre isso.

O autor, inserido na sociedade portuguesa, encara o seu sujeito poético, assim como o funcionamento da mesma. O poema reflete essa análise.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das

etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, (...)

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

2. Uma Revisita a Lisboa pelo Heterônimo Álvaro de Campos

Em ‘Lisbon Revisited’ (1923), o eu-lírico é retratado como sendo extremamente pessimista e desajustado em relação às estruturas sociais. Os primeiros versos indicam o sentimento de deslocamento que o poema retrata.

No poema Lisbon revisited, o eu-lírico expõe sua revolta diante da sociedade contemporânea, expresso por meio de exclamações. O sujeito poético se nega a aceitar o que lhe é imposto, expressando seu fracasso e sua decepção. Assim, percebemos o sentimento rebelde que o permeia.

Vemos no poema a presença de pares opostos fundamentais que permitem o estabelecimento da escrita; o contraste entre passado e presente, infância e maturidade, o estilo de vida já conhecido e o atual, é o que faz com que o texto se construa.

Não: não quero nada

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

3. A Autopsicografia de Fernando Pessoa

Em 1931, o poema Autopsicografia foi criado e posteriormente publicado na Presença, uma revista significativa para o Modernismo português.

O eu-lírico reflete sobre a sua identidade ao longo de doze versos. Escrever surge como um elemento fundamental nesse processo, dando forma e direção ao sujeito. A escrita é, portanto, vista como parte intrínseca da relação entre o eu-lírico e a sua própria existência.

O sujeito poético é o foco da criação, leitura e recepção literária. Ele aborda o processo de escrita, que envolve o autor, o leitor e a obra criada, dando conta de todos os participantes desse momento.

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

4. Álvaro de Campos: A Tabacaria

O poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, é certamente um dos mais populares. Composto por muitos versos, ele descreve a relação do eu-lírico consigo mesmo no meio de uma cidade moderna, numa época específica da história.

Neste poema de 1928, podemos ver o eu-lírico refletindo sobre a desilusão a partir de um ponto de vista niilista. Com seu olhar pessimista, a narrativa começa com essa longa e bela obra poética.

O poema se desenvolve a partir da constatação do solitário, vazio e desconectado da sua verdadeira realidade. Apesar de acreditar em sonhos, o sujeito poético não consegue sair do estado atual que se encontra: a diferença entre a situação atual e aquilo que deseja ser é o que constrói o poema, sendo a constatação do lugar atual e o lamento da distância para o ideal.

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

5. Obras de Fernando Pessoa

O poema "Isto", assinado por Fernando Pessoa e publicado na revista Presença em 1933, é um metapoema, ou seja, um poema que discorre sobre o seu próprio processo de composição. Não foi escrito por nenhum dos seus heterônimos.

Ao mostrar o processo de construção dos versos para o leitor, o eu-lírico permite que haja um contato mais próximo e afetivo entre o autor e seu público.

O poema parece usar a lógica da racionalização como forma de construção: os versos fluem da imaginação, e não do coração. Por fim, o eu-lírico deixa para o leitor a tarefa de se deliciar com o que foi escrito.

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está de pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

6. Homenagem Triunfal a Álvaro de Campos

O poema, que possui trinta estrofes (apenas algumas delas são mostradas abaixo), destaca traços típicos da Modernidade, revelando as angústias e novidades de seu contexto histórico.

Em 1915, o período histórico e as mudanças sociais serviram como tema na publicação do periódico Orpheu. A escrita trouxe a modernidade, dolorosa e aflitiva, ao apresentar a cidade e o cenário industrializado.

Os versos nos lembram a mudança inevitável que o tempo traz, tanto boas quanto ruins. Eles mostram a transformação do homem que, de sedentário e contemplativo, precisa se tornar produtivo e imerso nos afazeres da vida diária.

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

7. A Profecia de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa assinou seu poema Presságio em 1928, mais para o final de sua vida. Embora a maioria dos poemas de amor celebrem esse sentimento nobre, aqui o eu-lírico se sente desconectado, incapaz de formar laços afetivos. Para ele, o amor se torna um problema e não uma bênção.

Vinte versos estruturados em cinco estrofes revelam um sujeito poético que anseia por viver o amor em sua máxima intensidade, porém não sabe como agir. A triste realidade de seu amor não ser correspondido - e ainda assim, não conseguir ser compreendido - gera grande aflição a quem ama no escuro.

É surpreendente como alguém que consegue escrever versos tão encantadores parece incapaz de se comunicar com a pessoa que ama.

O poema nos lembra que, muitas vezes, temos medo de revelar nosso amor por medo de sermos rejeitados. Assim, geralmente acabamos adotando uma postura pessimista e derrotista.

O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.

Sabe bem olhar p'ra ela,

Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há de dizer.

Fala: parece que mente...

Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,

Se pudesse ouvir o olhar,

E se um olhar lhe bastasse

P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;

Quem quer dizer quanto sente

Fica sem alma nem fala,

Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar...

8. Álvaro de Campos: Comemorando o Aniversário

O poema Aniversário, de Álvaro de Campos, possui um tom doloroso que nos toca profundamente, gerando um forte sentimento de identificação. O aniversário torna-se um ponto de partida para uma reminiscência nostálgica, fazendo com que o eu-lírico percorra a sua própria história ao mesmo tempo em que relembra o que o motivou.

Os versos publicados em 1930 evocam uma saudade pelo passado, de um tempo que jamais será recuperado. É uma tristeza que se torna ainda mais presente ao se ler a passagem inicial do poema.

O passado é algo a ser reverenciado, pois muitas coisas mudaram desde então. Pessoas queridas partiram, o eu-lírico abandonou sua ingenuidade e ainda se mantém em pé a casa da infância. Enquanto o passado é uma fonte de felicidade, o presente é envolto por uma melancolia amarga.

O eu-lírico parece abalado, vazio e triste. Ele guarda algo além de uma saudade comum: um sentimento de desilusão e um desejo de voltar ao passado e ficar lá.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

9. A Pastoral de Alberto Caeiro

Em 1914, o poema O guardador de rebanhos foi escrito e, posteriormente, publicado em 1925. Esse extenso poema, representado por um trecho abaixo, foi essencial para o surgimento do heterônimo Alberto Caeiro.

O eu-lírico se mostra humilde e originário do campo, desfrutando da contemplação da paisagem, da beleza dos fenômenos naturais, dos animais e do espaço ao seu redor.

A escrita também destaca o sentimento sobre o raciocínio. É também exaltado o sol, o vento, a terra, assim como os elementos fundamentais de uma vida rural.

Na obra O guardador de rebanhos, a questão do divino é sublinhada; para muitas pessoas Deus é um ser superior, entretanto, nos versos da obra, percebemos que para Caeiro, a natureza é a criatura que nos rege.

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente

Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr de sol

Para a nossa imaginação,

Quando esfria no fundo da planície

E se sente a noite entrada

Como uma borboleta pela janela.

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10. Quantas Almas Possuo? - Uma Reflexão de Fernando Pessoa

No início de Não sei quantas almas tenho, observa-se uma problemática bem cara à poesia pessoana: o eu-lírico é visto como múltiplo, ansioso e isolado. O poeta tem consciência de que está em constante transformação e não consegue se conhecer por completo.

O poema gira em torno do tema da identidade e é construído através da investigação da personalidade do sujeito poético.

O poema interroga: quem sou eu? Como me tornei o que sou hoje? Quem fui no passado e quem serei no futuro? Como me relaciono aos outros? Como me encaixo no cenário?

O eu-lírico está cheio de euforia e ansiedade, tentando desesperadamente responder às perguntas que se coloca.

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: «Fui eu?»

Deus sabe, porque o escreveu.

Carolina Marcello
Escrito por Carolina Marcello

Formou-se em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela mesma instituição. Durante os estudos universitários, foi co-fundadora do Grupo de Estudos Lusófonos da faculdade e uma das editoras da revista da mesma, que se dedica às literaturas de língua portuguesa.