Cinco Poemas Inesquecíveis de Caio Fernando Abreu


Escrito por Carolina Marcello

Caio Fernando Abreu é uma das principais figuras da literatura brasileira. O seu trabalho poético possui uma força e uma intensidade que encantam leitores de todas as gerações.

O poeta gaúcho Caio é muito citado, devido às suas frases fortes. Entretanto, o número de poemas publicados por ele em vida foi muito reduzido, sendo conhecidos apenas após a sua morte. Seus versos exploram temas como solidão, incompletude, amor e o erotismo homoafetivo.

Descubra cinco de suas principais obras.

1. Sem Título

Eu quero a vida.

Com todo o riscos

eu quero a vida.

Com os dentes em mau estado

eu quero a vida

insone, no terceiro comprimido para dormir

no terceiro maço de cigarro

depois do quarto suicídio

depois de todas as perdas

durante a calvície incipiente

dentro da grande gaiola do país

de pequena gaiola do meu corpo

eu quero a vida

eu quero porque quero a vida.

É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu

deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal

certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.

Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.

A VIDA

À VIDA

Na década de 70, esse poema nos mostra um desejo ardente de vida, que impulsiona o eu-lírico para mergulhar em novas experiências.

O poema, geralmente associado à juventude, expressa aquele impulso, às vezes até desacautelado, em direção à aventura. A leitura sugere uma vontade de partir, explorar, expressar-se de forma intensa, atitudes típicas de jovens.

Ao longo dos versos, o sujeito poético não idealiza a vida, tampouco minimiza seus aspectos negativos - ao contrário, assume tudo o que há de ruim: as castrações, as limitações do corpo e do Estado, as dores físicas e afetivas. Entretanto, ainda assim destaca a sua forte necessidade de viver.

2. A Vida de Rômulo

Era verão, era de tardezinha,

um de nós cantou uma música de Tom Jobim

Falando em verão, em tardezinha. O sol caiu no mar,

aquela luz lá embaixo se acendeu, descemos da Barra

pra Copacabana e fomos ver o show da Gal cantando

deixa sangrar.

Fazia calor, vestíamos inteirinhos de branco,

acreditávamos nas coisas dum jeito que seria tolo

se não fosse tão verdadeiro. E tão bonito

(a gente nem sabia, mas tudo era simples

e nossa dor não era quase nada.)

Dia seguinte, menti que ia morrer e você foi embora estudar acupuntura

Eu fiquei, viajei, tomei droga,

Gozado é que não morri.

O poema Rômulo foi escrito na década de 80 e aqui, abaixo, está um trecho dele:

Num contexto onde a conservadorismo é a norma, Caio Fernando Abreu merece aplausos por escrever sobre a atração homoafetiva e colocar um personagem que não tem vergonha de assumir seus desejos e hábitos.

No poema, o eu-lírico conta sobre o seu cotidiano: o clima, as áreas da cidade que ia, o tempo do ano, o horário, o som que o acompanhava, e o relacionamento com o parceiro.

O poema aborda o passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo, narrando o encontro com Rômulo e suas consequências.

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3. Sem Título

quero escrever as coisas mais vadias

só porque minhas mãos estão tão frias

quero escrever as coisas mais amargas

e não encontro rima

nem motivo.

Em 1979, Caio expressou a sua revolta contra a ditadura militar através de seu poema datado de 2 e 3 de maio. Os versos foram usados para desafiar o status quo e a falta de liberdade durante os anos de chumbo.

Sentindo necessidade de se expressar, o eu-lírico escreve sem motivo claro. Ele não entende qual será a razão nem a forma que terá seu desejo, mas sabe que precisa se colocar à mostra.

O ímpeto de escrever traz um sopro de energia ao eu-lírico, contrariando as mãos frias e sem vida. Apesar de não saber o que se seguirá, nem qual será a forma do texto, ele sente que precisa transbordar para o papel.

4. Recordações Breves

De ausência e distâncias te construo

amigo

amado.

E além da forma

nem mão

Nem fogo:

meu ser ausente do que sou

e do que tenho, alheio.

Na dimensão exata do teu corpo

cabe meu ser cabe meu voo mais remoto

cabem limites transcendências

Na dimensão do corpo que tu tens

e que eu não toco

cabe o verso torturado

e um espesso labirinto de vontades

Porém não sabes.

No dia 13 de outubro de 1969, no contexto político de repressão da ditadura militar, uma breve memória foi dedicada a Antônio Bivar em Campinas.

Esses versos constituem uma parte de um poema mais extenso, que versa sobre o desejo erótico e a conexão entre duas pessoas que desejam se aproximar.

A ausência do outro é sentida de forma intensa pelo eu-lírico, despertando nesse a vontade de estar com ele e de aproveitar as qualidades que os dois corpos oferecem.

No poemar Breve memória, o sujeito poético deseja alcançar mais que a dimensão física no seu amante/amigo. Ele quer explorar aprofundadamente o todo, compreendendo não apenas o corpo, mas também a alma.

5. Febre de 77º

Deixa-me entrelaçar margaridas

nos cabelos de teu peito.

Deixa-me singrar teus mares

mais remotos

com minha língua em brasa.

Quero um amor de suor e carne

agora:

enquanto tenho sangue.

Mas deixa-me sangrar teus lábios

com a adaga de meus dentes.

Deixa-me dilacerar teu flanco

mais esquivo

na lâmina de minha unhas.

Quero um amor de faca e grito

agora:

enquanto tenho febre.

No poema de Caio Fernando Abreu, composto em 14 de janeiro de 1975, encontramos uma das mais belas expressões da poesia erótica. O eu-lírico desafia o leitor ao expor seus desejos de forma extremamente explícita e crua.

O sujeito poético não tem rodeios: é direto e intencional. Ele sabe o que deseja e como o quer. Logo nos primeiros versos ele deixa claro que seu objeto de desejo é alguém do mesmo sexo, uma declaração ousada para a época ditatorial.

No poema, existe além do movimento corajoso, uma relação com traços de masoquismo e violência, mas que é predominantemente guiada por um desejo ardente.

A Obra Poética de Caio Fernando Abreu

Caio divulgou muito poucos poemas durante sua vida. Prece e Gesto foram publicados no Jornal Cruzeiro do Sul em 8 de junho de 1968; Oriente e Press to Open foram impressos no Suplemento Literário de Minas Gerais na década de 70. Estes são os únicos trabalhos poéticos conhecidos que foram lançados pelo escritor.

Durante quase três décadas, Caio compôs poesias, conforme comprovado por seu espólio. Seus versos começaram a ganhar forma em 1968 e, apesar de não ter produzido em grande escala, suas últimas obras foram escritas em 1996, o ano de sua morte.

Em 2012, Letícia da Costa Chaplin e Márcia Ivana de Lima e Silva conseguiram, através de doações de familiares e amigos, material para a publicação do livro Poesias Nunca Publicadas de Caio Fernando Abreu.

Poesias Nunca Publicadas de Caio Fernando Abreu

A Vida e Obra de Caio Fernando Abreu

Caio Fernando Abreu foi reconhecido como um dos mais importantes membros da geração dos anos oitenta, sendo conhecido por suas habilidades como escritor, jornalista e dramaturgo.

Com apenas seis anos, o autor, nascido em Santiago do Boqueirão, no interior do Rio Grande do Sul, escreveu o seu primeiro texto.

Em 1963, a família de Caio mudou-se para Porto Alegre, a capital. Três anos depois, o jovem publicou o seu primeiro conto na revista Cláudia e, a partir daí, começou a escrever o seu primeiro romance.

Caio ingressou nas graduações de Letras e Artes Cênicas, mas não se formou em nenhuma delas. Em 1968 ele mudou-se para São Paulo para ingressar na redação da revista Veja, onde começou a trabalhar.

Caio Fernando Abreu

No período dos anos setenta, ele residiu no Rio de Janeiro, exercendo as funções de pesquisador e redator de várias revistas. Porém, durante a ditadura militar, sofreu perseguições e acabou se exilando na Europa, estabelecendo-se em cidades como Londres e Estocolmo.

Ao regressar ao Brasil, ele voltou a produzir intensamente as obras que seriam vistas como suas maiores obras: "O Ovo Apunhalado" (1975) e "Morangos Mofados" (1982).

Caio obteve uma série de prêmios, sendo três vezes vencedor do Prêmio Jabuti na Categoria Contos, Crônicas e Novelas. Em 1989, recebeu o Prêmio Molière por sua peça de teatro A Maldição do Vale Negro, escrita em parceria com Luiz Artur Nunes. Dois anos mais tarde, foi laureado pelo Prêmio da APC por Onde andará Dulce Veiga?, seu romance do ano.

Carolina Marcello
Escrito por Carolina Marcello

Formou-se em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela mesma instituição. Durante os estudos universitários, foi co-fundadora do Grupo de Estudos Lusófonos da faculdade e uma das editoras da revista da mesma, que se dedica às literaturas de língua portuguesa.