Brilho Poético de Ferreira Gullar: 12 Poemas


Escrito por Rebeca Fuks

Ferreira Gullar (1930-2016) é uma das figuras mais importantes da literatura brasileira. É reconhecido internacionalmente como um dos maiores escritores do país.

Haroldo de Campos é considerado o expoente da geração concretista, sendo autor de poemas que atravessaram décadas e expressam a realidade política e social do Brasil.

Volte a ouvir 12 das grandiosas músicas que ele compôs.

1. Um Poema Impuro

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do

Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos

e pais dentro que um enigma?

mas que importa um nome

debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre

cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de

garfos e facas e pratos louça que se quebraram já

Ferreira Gullar escreveu o Poema sujo durante o seu exílio na Argentina, devido a motivos políticos. O poema é um extenso trabalho criado por ele na época.

Em 1976, o Brasil estava vivendo um período de opressão, conhecido como 'anos de chumbo'. O poeta, ao mesmo tempo em que observava de longe a tristeza que se abatia em seu país, compunha sua obra-prima: o Poema Sujo, com mais de dois mil versos.

Ao escrever, o eu-lírico exprime suas ideias sobre a solidão e os benefícios da liberdade, sentimentos que combinam-se perfeitamente com a situação vivida por Ferreira Gullar naquele momento.

No começo desse poema, o poeta se apresenta: seu lugar de nascimento, sua casa, o cenário de São Luís, e sua família. A partir daí, ele vai discutir questões que envolvem sua identidade e posição política, buscando criar um elo entre o eu individual e o nós coletivo.

2. O Homem Comum

Sou um homem comum

de carne e de memória

de osso e esquecimento.

Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião

e a vida sopra dentro de mim

pânica

feito a chama de um maçarico

e pode

subitamente

cessar.

Sou como você

feito de coisas lembradas

e esquecidas

rostos e

mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia

em Pastos-Bons,

defuntas alegrias flores passarinhos

facho de tarde luminosa

nomes que já nem sei

O sujeito poético em Homem comum procura encontrar a sua identidade, assim sendo, parte em busca da autodescobrição.

Ao longo da jornada de descoberta, o sujeito descobre os caminhos materiais (expressos pela carne) e imateriais (simbolizados pela memória) que percorreu. Ao fim disso, ele se apresenta como resultado de todas as experiências que viveu.

O eu-lírico se conecta ao leitor ao mostrar que também vive as mesmas experiências cotidianas ("ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião") e ainda compartilha preocupações comuns a todos ("sou como você feito de coisas lembradas e esquecidas"). Assim, ele se aproxima do universo do leitor e destaca a universalidade das inquietações humanas.

Quer saber mais? Veja

3. Tradução

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

– que é uma questão

de vida ou morte –

será arte?

Ao se fazer uso da primeira pessoa, este poema desperta uma análise mais aprofundada da subjetividade do artista. Uma busca pelo autoconhecimento é feita, com o propósito de desvendar as complexidades existentes dentro do sujeito poético.

É importante enfatizar que a relação do poeta não se limita a si mesmo, mas também abrange todos os que estão a sua volta.

Os versos, curtos e objetivos, transmitem uma linguagem direta, sem circunlóquios, e tem como propósito examinar o que está no íntimo do eu-lírico.

No início dos anos 80, Fagner compôs a música para o poema intitulado “Traduzir-se”. Em 1981, ele lançou um álbum com o mesmo nome.

4. Cuidado com as armadilhas do mundo

No mundo há muitas armadilhas

e o que é armadilha pode ser refúgio

e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo

aberta para o céu

e uma estrela a te dizer que o homem é nada

ou a manhã espumando na praia

a bater antes de Cabral, antes de Troia

(há quatro séculos Tomás Bequimão

tomou a cidade, criou uma milícia popular

e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas

e muitas bocas a te dizer

que a vida é pouca

que a vida é louca

E por que não a Bomba? te perguntam.

Por que não a Bomba para acabar com tudo, já que a vida é louca?

A seguir vem o trecho inicial do poema No mundo há muitas armadilhas: "No mundo há muitas armadilhas/ armadilhas de dor e de lutas/ armadilhas que ceifam sonhos/ e as esperanças da humanidade".

A escrita é um meio de refletir sobre a experiência de viver no mundo e os desafios que isso acarreta para o autor e o público.

Ao abordar temas que nos dizem respeito, o eu-lírico desperta nossa reflexão, provocando-nos a pensar criticamente. A intenção de Gullar é estimular o interesse e despertar nossas inquietações, provocando-nos a repensar tudo o que nos rodeia.

5. Fotografia Aérea

Eu devo ter ouvido aquela tarde

um avião passar sobre a cidade

aberta como a palma da mão

entre palmeiras

e mangues

vazando no mar o sangue de seus rios

as horas

do dia tropical

aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos

seus jardins

eu devo ter ouvido

aquela tarde

em meu quarto?

na sala? no terraço

ao lado do quintal?

o avião passar sobre a cidade

O trecho inicial de Uma fotografia aérea, descrito acima, traz o sujeito poético refletindo sobre sua origem em São Luís do Maranhão.

O poeta recordou o momento em que um avião passou pelo céu de sua terra natal. Será que ele viu isso? O que ficou gravado na memória é um mistério. O que ele retirou da imagem? Será que conseguiu transcender a representação humana e aproximar-se do divino?

O poema nos deixa pensando: uma fotografia é capaz de reproduzir os afetos e as experiências emocionais? Será possível capturar essas sensações por meio de uma imagem?

6. A Demonstração de que Dois e Dois São Quatro

Como dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

embora o pão seja caro

e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros

e a tua pele, morena

como é azul o oceano

e a lagoa, serena

como um tempo de alegria

por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia

no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro

e a liberdade, pequena.

"Como dois e dois são quatro" é um poema com um tom social e político, característico da lírica de Gullar. Esta obra breve mas poderosa reflete a sensibilidade do poeta em relação às questões políticas da época.

Durante a ditadura, o escritor foi exilado por ter levantado questões relacionadas à repressão e lutar pelos ideais de liberdade. Na obra Como dois e dois são quatro, o autor se mostra como um questionador e provocador, querendo descobrir quais são os limites da liberdade e os limites impostos pela vida em sociedade.

O poema, apesar de falar sobre assuntos sérios e problemas complicados, tem uma conclusão positiva e esperançosa.

7. Perda Inexplicável

Onde começo, onde acabo,

se o que está fora está dentro

como num círculo cuja

periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,

nas pessoas, nas gavetas:

de repente encontro ali

partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:

vejo do alto a cidade

e em cada esquina um menino,

que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.

Onde estarão meus pedaços?

A procura de si mesmo e de pistas da sua gênese estão presentes nos versos iniciais do poema Extravio. O sujeito poético entende que precisa compreender como se tornou aquilo que é e, para isso, procura vasculhar os seus rastros do passado.

Ao se olhar com uma lupa, o eu-lírico acredita que poderá entender melhor o seu percurso (pessoas com quem interagiu, emoções vividas pessoalmente e lugares por onde passou). Dessa forma, será capaz de lidar melhor consigo mesmo e com seu meio social.

8. Mês de Maio de 1964

Na leiteria a tarde se reparte

em iogurtes, coalhadas, copos

de leite

e no meu espelho meu rosto. São

quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo

a vida

que é cheia de crianças, de flores

e mulheres, a vida,

esse direito de estar no mundo,

ter dois pés e mãos, uma cara

e a fome de tudo, a esperança.

Esse direito de todos

que nenhum ato

institucional ou constitucional

pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!

quantos em cárceres escuros

onde a tarde fede a urina e terror.

O tema do poema, explicitado no título já, é a ditadura militar que interferiu de forma abrupta na vida de Ferreira Gullar e de inúmeros outros brasileiros, interrompendo seus planos e sonhos.

Neste poema autobiográfico, apenas um trecho, Gullar aborda temas como repressão, censura e duras consequências vivenciadas durante os anos de chumbo. A intenção desta abordagem é manter a memória coletiva viva sobre o terror e o medo que a ditadura causou.

Aproximando-se o medo dos que contestavam o regime, a maioria prosseguia com sua vida rotineira "de iogurtes, coalhadas, copos de leite", sem grandes preocupações.

Com 33 anos, o eu-lírico observa a rota que o seu país está a seguir com indignação e desejo de alteração. Ele incentiva todos que acreditam que nenhuma lei ou decisão dos governantes consegue suprimir os seus direitos. Ele tem esperança de que os cidadãos podem trazer uma mudança real.

9. Cantar para Não Desaparecer

Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.

Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.

Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento.

Apesar de normalmente lidar com questões sociais e coletivas, "Cantiga para não morrer" é um dos poucos poemas de amor de Ferreira Gullar. Nele, o sujeito poético busca retratar o sentimento da paixão.

O poeta descreve seu enamoramento pela "moça branca de neve". Apesar de não sabermos nada sobre ela, além de sua aparência, o eu-lírico se entrega à sensação de amor que sente por ela, sem se preocupar com nada além de expressar seu afeto.

Neste poema, o autor não se concentra no momento em que o amor se manifestou, mas sim naquele em que a amada decide partir. O protagonista se encontra desorientado, sem saber como reagir à situação, e pede que ela o leve consigo, de alguma forma, ao seu destino.

Em 1984, Fagner lançou a versão musicalizada do poema; confira o resultado abaixo.

10. A Beleza da Poesia

Onde está

a poesia? indaga-se

por toda parte. E a poesia

vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.

Exegetas desmontam a máquina da linguagem.

A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido

misturar o poema com Ipanema.

O poeta depõe no inquérito:

meu poema é puro, flor

sem haste, juro!

Não tem passado nem futuro.

Não sabe a fel nem sabe a mel:

é de papel.

Ao iniciarmos A poesia, podemos notar que se trata de um metapoema, sendo uma obra que investiga a origem do verso, buscando entender o papel da lírica no planeta.

O sujeito poético deseja, entender a função da poesia, conhecer o seu lugar, entender em que forma ela se destaca nos dias atuais.

Não se trata apenas de saber de onde é que surge a lírica, é também necessário examinar o seu motivo e poder de transformação social.

11. Nenhuma Vaga Disponível

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,

está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

O poema, senhores,

não fede

nem cheira.

No poema "Não há vagas", Gullar usa a poesia como um meio para criticar a sociedade, destacando problemas de âmbito coletivo e público como sendo de maior importância do que a própria obra literária.

Ele novamente recorre à metalinguagem, visível nos versos finais, onde ele diz: "O poema, senhores, não fede nem cheira". Com isso, ele quer expressar que, com tantas injustiças ocorrendo, o seu trabalho poético torna-se pequeno e inexpressivo.

Parece que este poeta usa a ironia ao "criticar" seu próprio poema, sugerindo sua insatisfação.

12. Os Falecidos

Os mortos vêem o mundo

pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,

com nossos ouvidos,

certas sinfonias

algum bater de portas,

ventanias

Ausentes

de corpo e alma

misturam o seu ao nosso riso

se de fato

quando vivos

acharam a mesma graça.

Nesta poesia, o autor discute um dos assuntos mais enigmáticos e controversos da sociedade: a morte. Aqui a relação entre os vivos e os que partiram é abordada de maneira misteriosa e, ao mesmo tempo, com uma nota de esperança.

Ele afirmou que os mortos não partem, mas continuam a viver através dos olhos e dos sentimentos dos que ficaram. Assim, embora eles não estão presentes em corpo, eles ainda vêem o mundo e estão presentes na vida de seus entes queridos como um espírito.

Gullar sugere a união entre o passado e o presente, ao afirmar que os "ausentes de corpo e alma" deixam para trás seus valores e sentimentos, que ainda estão presentes e vivos.

A Vida e a Obra de Ferreira Gullar

Ferreira Gullar nasceu em São Luís do Maranhão, em 1930, e ficou famoso como escritor. José de Ribamar Ferreira foi o seu nome original.

Aos 18 anos, ele lançou seu primeiro livro de poesias intitulado Um pouco acima do chão. Decidindo sair do interior, ele viajou até o Rio de Janeiro em 1951. Uma vez lá, estabeleceu-se e começou a trabalhar como revisor de textos da revista O Cruzeiro.

Retrato de Ferreira Gullar

Ferreira Gullar é um dos grandes nomes da poesia concreta e neoconcreta brasileira. Seu livro A Luta Corporal (1954) reflete sua experiência com a poesia concreta. Em 1956, ele foi um dos participantes da primeira exposição de Poesia Concreta.

Durante várias décadas, ela escreveu, principalmente, poesia e abordou questões sociais. Além disso, também escreveu para o teatro e compilou roteiros de novela.

“eu sou o que eu sou”. Durante a ditadura militar, Ferreira Gullar exilou-se em países da América do Sul como a França, o Chile, o Peru e a Argentina. Nesse período de exílio escreveu o famoso Poema Sujo e a famosa frase: "eu sou o que eu sou".

A arte existe porque a vida não basta.

Reconhecimento pela Conquistas Alcançadas

Gullar recebeu o prêmio Jabuti de Melhor Livro de Ficção em 2007 e quatro anos mais tarde foi premiado novamente, desta vez na categoria poesia.

Em 2010, ele foi agraciado com o importante Prêmio Camões e também recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em 2014, ele foi escolhido para se tornar membro da Academia Brasileira de Letras.

Ferreira Gullar discursando na ABL

Ferreira Gullar partiu no dia 4 de dezembro de 2016 no Rio de Janeiro.

Rebeca Fuks
Escrito por Rebeca Fuks

É graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), possui mestrado em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutorado em Estudos de Cultura pelas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).