Análise e Interpretação de Morte e Vida Severina


Escrito por Carolina Marcello

O poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é uma obra prima da literatura brasileira. Narra a história de Severino que, no momento do seu nascimento, foi vítima de uma profecia infeliz: "Morrerás no mesmo dia em que nasceres". A jornada de Severino, em busca de um sentido para sua existência, é contada em versos ricos em poesia e simbolismo.

Entre 1954 e 1955, foi escrito o relato de Severino, um retirante entre inúmeros outros. A obra conta sua história.

Um Breve Relato

Nesta obra, João Cabral de Melo Neto narra o trajeto de Severino, passando por momentos de morte e vida.

Severino é apenas um entre inúmeros outros cujo destino trágico no sertão é comum: morrer de emboscada antes de completar vinte anos, envelhecer prematuramente antes dos trinta anos e sofrer de fome a cada dia.

Severino viaja pelo sertão com a esperança de ter uma vida mais próspera na costa. O poema é dividido em dois segmentos: a jornada para Recife e a vida na capital pernambucana depois que ele chega lá.

Um olhar detalhado sobre o caminho de Severino

A Tragédia Início

A morte parece ser uma presença constante na primeira parte da narrativa, que é caracterizada por uma paisagem agreste e um chão duro feito de pedra.

A morte pode ser extremamente difícil de suportar, especialmente quando está relacionada à pobreza e ao trabalho. Ela pode acontecer de maneira violenta, em decorrência da opressão sofrida em razão do trabalho árduo, ou por meio de condições deploráveis, que não permitem a aquisição de bens materiais.

_ Dize que leva somente

coisas de não:

fome, sede, privação

Em um ambiente em que o emprego causa a morte, a certeza mais absoluta é a de que trabalhar levará à morte.

Severino, meio abatido, passeou por aquele sertão tão miserável até que encontrou uma casa mais bem cuidada. Decidiu então perguntar por uma possível oportunidade de trabalho, porém não havia nenhuma para quem trabalhava com as atividades do campo.

_ Como aqui a morte é tanta,

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Severino precisa se virar diante da adversidade do sertão.

Explorando Novas Oportunidades

Severino se aproximava do litoral, e a terra se tornava mais macia. Apesar disso, a morte não abrandava. O solo era fértil e o canavial era vasto, mas mesmo assim a paisagem parecia ser desabitada.

O retirante acredita que o motivo para o lugar estar tão tranquilo é a fartura da terra, que não exige que se trabalhe todos os dias. Ele acha que chegou a um local onde a morte é suave e a existência não é opressiva.

Decerto a gente daqui

jamais envelhece aos trinta

nem sabe da morte em vida,

vida em morte, severina;

e aquele cemitério ali,

branco na verde colina

decerto pouco funciona

e poucas covas aninha

O funeral de um trabalhador foi realizado. Uma multidão se reuniu para dizer adeus àquele que havia sido um grande amigo e colaborador. O ato foi marcado por muitas lágrimas e orações. Uma fila de amigos e familiares se formou para render homenagem ao falecido. As palavras de consolo e esperança foram oferecidas para aqueles que ficaram para trás. A despedida foi um momento de muita tristeza, mas também de orgulho e gratidão.

Severino estava equivocado ao pensar que o pequeno cemitério não recebia muitos falecidos. Embora seja pequeno, as covas são bem rasas e estreitas, o que explica a limitação no tamanho. Ele ouve os trabalhadores se despedindo do falecido.

_ Essa cova em que estás,

com palmo medida,

é a conta menor

que tiraste em vida.

(...)

_ Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.

O trecho do poema evidencia fortemente o caráter social e político. O funeral de um lavrador reflete o triste destino de quem passou a vida trabalhando em terras alheias, sem receber direitos e sendo explorado em suas condições de vida.

Morto de fome e desespero, o trabalhador que buscava na terra seu único meio de sobrevivência encontra na sua cova a única morada que lhe restava. O que ele esperava era um pedaço de chão para laborar, entretanto, acabou com a terra de sua sepultura.

Explorando a Cidade do Recife

A chegada à capital do Pernambuco ainda é marcada por morte e miséria, mas o cenário hoje é muito diferente. Em vez das terras secas de pedra, o local que agora é sinônimo de pobreza e destruição é a área alagada do mangue, onde muitos retirantes vivem.

Fugindo da seca e da morte, os diversos Severinos chegam à Recife com esperança de dias melhores. No entanto, sua marginalização e miséria os seguem aos novos solos, cheios de água. Mesmo assim, eles continuam em busca de um lugar com mais oportunidades em suas vidas.

A Desesperança

Os retirantes seguem dependendo da terra para sua sobrevivência, no entanto, mudando suas práticas, eles agora estão cobertos de lama ao invés de poeira, pois caçam caranguejos no mangue.

O cenário que se tem é sórdido, o que faz com que o suicídio pareça a melhor escolha, extinguindo a vida que, de certa forma, já é considerada morte.

A solução é apressar

a morte a que se decida

e pedir a este rio,

que vem também lá de cima,

que me faça aquele enterro

que o coveiro descrevia:

caixão macio de lama,

mortalha macia e líquida

Severino buscava redenção ao final de sua penitência, contudo, ao percorrer o sertão foi abraçado pela morte. Após seu longo trajeto, o rosário chegou ao fim, no entanto, a esperança de mudar o destino não foi realizada e o encontro com a morte foi reconhecido novamente.

Desesperado, Severino pensa em dar cabo da própria vida.

No cais, Severino estava prestes a desistir da vida, mas foi interrompido por José, residente do mangue. Os dois trocaram ideias sobre a vida dura no sertão e nos mangues de Recife. O assunto chegou à morte, anunciada mas postergada, deixando-os com mais dias de dor.

O anúncio do nascimento do filho de José é o ponto culminante do poema Auto de Natal. Seu subtítulo e o nome do pai trazem à mente o nascimento de Jesus, tornando este momento um grande momento de epifania.

A Celebração do Natal

Os primeiros a chegarem para a festa são os vizinhos e duas ciganas. Apesar de serem pessoas pobres, elas trazem presentes para o menino, assim como os três reis magos. Eram dezesseis pequenas lembranças, e cada uma delas era acompanhada das palavras: "Minha pobreza é tal".

Após a entrega dos presentes, as duas ciganas preveram o futuro do menino. A primeira cigana previu que ele faria um trabalho duro e difícil no meio da lama. Por outro lado, a segunda cigana afirmou que ele seria um trabalhador industrial, tendo suas mãos e roupas cobertas de graxa preta, em vez de lama.

O recém-nascido é descrito como uma criança pequena, fraca, mas saudável. Isso foi prenúncio de que, independentemente de estar no mangue ou em uma fábrica, o futuro de um trabalhador simples estava por vir.

Severino e José continuam sua conversa, quando de repente, o novo pai anuncia uma profunda revelação.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

A conclusão do Auto de Natal é marcada pelo nascimento do menino.

Mesmo que cercado por tanta tragédia, Severino vê a vida florescer em meio à tantas dificuldades. O seu percurso termina com a esperança que a vida traz.

A Morte e a Vida de Severina: Uma Análise

Forma e Apresentação

O poema trágico Morte e Vida Severina mostra um retrato do cotidiano de um homem do Nordeste brasileiro, o auto de natal pernambucano.

Após sua fuga em busca de um destino livre de seca e fome, Severino encontrou a morte. No entanto, ao presenciar o nascimento de um recém-nascido retirante, assemelhado a ele, Severino encontrou esperança. O momento marcante do nascimento foi celebrado como se fosse um presépio, pois as pessoas chegaram para presentear o bebê e celebrar com alegria esse novo ser.

Ilustração da versão em quadrinhos de Vida e morte severina.

No período medieval espanhol surgiram os autos, um subgênero da literatura dramática. Gil Vicente é considerado o maior representante na língua portuguesa. Uma obra que revela os mesmos recursos usados nos autos medievais é Morte e Vida Severina.

A obra se divide em 18 partes, iniciando com uma breve apresentação dos acontecimentos que se seguem, assim como nos autos medievais. Nela, conhecemos Severino logo no início do poema.

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,

como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

(...)

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra

Severino é justamente um entre muitos ("iguais em tudo na vida"), o que o faz se destacar como uma figura alegórica em meio aos Auto medievais, que sugere algo muito maior do que sua própria individualidade. Tal qual, o título da obra já o define como um adjetivo.

Ilustração da versão em quadrinhos de Vida e morte severina.

A maioria dos versos deste poema é formada por sete sílabas poéticas, ou redondilha menor, típica dos autos. Estes versos são curtos e extremamente sonoros.

João Cabral tem o hábito de empregar a constante repetição de versos para reforçar o seu tema, assim como para acentuar a homofonia e a repetição de sons que, por sua vez, agregam um caráter melódico às suas composições.

— A quem estais carregando,

irmãos das almas,

embrulhado nessa rede?

dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,

irmão das almas,

A sonoridade do poema é um elemento essencial desta obra. A leitura flui como se fosse cantada, como forma de contar a história quando a escrita ainda não era acessível.

A sonoridade da poesia foi usada como uma ferramenta para facilitar a memorização. Esse estilo se assemelha às poesias de cordel, que João Cabral de Melo Neto costumava ler alto para os funcionários da fazenda.

Temática do Espaço

Neste poema, há uma ligação íntima entre espaço e tema. O protagonista é um retirante que viaja de Pernambuco para o Recife e durante a sua jornada ele se depara constantemente com a morte.

O rio Capiberibe é o fio condutor para quem quer ir do interior ao litoral. Esse é o percurso certo para chegar ao destino.

Pensei que seguindo o rio

eu jamais me perderia:

ele é o caminho mais certo,

de todos o melhor guia.

À medida que avança, Severino se depara com a morte de diversas formas: por inanição, por emboscada e por envelhecimento prematuro. No sertão, a morte está em todo lugar, sempre acompanhada pelo curso do rio. O próprio rio também se torna vítima da morte.

Mas como segui-lo agora

que interrompeu a descida?

Vejo que o Capibaribe,

como os rios lá de cima,

é tão pobre que nem sempre

pode cumprir sua sina

O caminho traçado pelo rio no sertão é, por vezes, tão frágil que ele se vê obrigado a interromper seu curso. Com isso, o percurso deste pode ser comparado ao trajeto que a vida costuma seguir em meio a esse cenário.

Ao longo dos anos, Severino presencia a morte inúmeras vezes. A primeira foi de um homem carregado numa rede por outros por ter sido assassinado durante uma emboscada visando tomar suas terras.

Vida e Morte Severina retrata as agruras do sertanejo.

Ao prosseguir sua jornada, Severino se deparou com um falecido sendo velado em uma residência simples. Ao chegar à pequena vila para tentar conseguir emprego, a morte surgiu como a única maneira de sobrevivência para aqueles que residiam ali.

Severino se admirou ao chegar na terra próxima ao litoral, pois ela estava repleta de cana e pensou que seria um ótimo local para começar seu trabalho. Entretanto, sua alegria foi abalada ao presenciar o sepultamento de um lavrador.

— Desde que estou retirando

só a morte vejo ativa,

só a morte deparei

e às vezes até festiva;

só a morte tem encontrado

quem pensava encontrar vida,

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Transformando a História em Quadrinhos

Miguel Falcão optou por transformar a narrativa de João Cabral de Melo Neto em animação 3D em preto e branco. Ele acreditava que essa forma de expressão poderia trazer sua história à vida de uma forma única e inovadora.

Você pode conferir o incrível resultado desta empreitada online.

A Geração de 45 e o Contexto da Escrita de Morte e Vida Severina

A Geração de 45, terceira fase modernista, contou com a participação de João Cabral de Melo Neto. Nesta, a poesia passou de um registro íntimo para um maior formalismo, tornando-se, assim, difícil de se enquadrar em alguma corrente literária específica.

João Cabral de Melo Neto fez parte da Geração de 45.

Como um construtor colocando tijolos, João Cabral nivelava as palavras de seus poemas com precisão. Sua sintaxe seca e versos curtos são símbolo de sua poesia exemplar.

A poesia apresenta variados temas, enquanto a prosa parece se dividir em duas linhas centrais: uma mais íntima, que ressalta o fluxo de consciência e tem na escrita de Clarice Lispector seu maior destaque; e outra que se debruça sobre as questões do regionalismo dos anos 30, sendo Guimarães Rosa o grande expoente.

Com o fim da ditadura de Getúlio Vargas, houve uma abertura social significativa. A Geração de 45 foi influenciada por isso e diretamente envolvida nos assuntos políticos e sociais da época.

Carolina Marcello
Escrito por Carolina Marcello

Formou-se em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela mesma instituição. Durante os estudos universitários, foi co-fundadora do Grupo de Estudos Lusófonos da faculdade e uma das editoras da revista da mesma, que se dedica às literaturas de língua portuguesa.