Comentários Sobre 7 Contos Africanos


Escrito por Rebeca Fuks

A literatura do continente africano é vasta e diversa, apresentando numerosas referências aos mitos e lendas tradicionais que são passadas de geração a geração.

Ao explorar os contos populares africanos, selecionamos algumas narrativas famosas para nos ajudar a conhecer melhor as culturas, tradições e simbologias deste universo.

1. A História de Namarasotha, o Homem

Havia um homem que se chamava Namarasotha. Era pobre e andava sempre vestido com farrapos. Um dia foi à caça. Ao chegar ao mato, encontrou uma impala morta.

Quando se preparava para assar a carne do animal, apareceu um passarinho que lhe disse:

– Namarasotha, não se deve comer essa carne. Continua até mais adiante que o que é bom estará lá.

O homem deixou a carne e continuou a caminhar. Um pouco mais adiante encontrou uma gazela morta. Tentava, novamente, assar a carne quando surgiu um outro passarinho que lhe disse:

– Namarasotha, não se deve comer essa carne. Vai sempre andando que encontrarás coisa melhor do que isso.

Ele obedeceu e continuou a andar até que viu uma casa junto ao caminho. Parou e uma mulher que estava junto da casa chamou-o, mas ele teve medo de se aproximar, pois estava muito esfarrapado.

– Chega aqui, insistiu a mulher.

Namarasotha aproximou-se então.

– Entra, disse ela.

Ele não queria entrar porque era pobre. Mas a mulher insistiu e Namarasotha entrou, finalmente.

– Vai te lavar e veste estas roupas, disse a mulher. E ele lavou-se e vestiu as calças novas. Em seguida, a mulher declarou:

– A partir deste momento esta casa é tua. Tu és o meu marido e passas a ser tu a mandar.

E Namarasotha ficou, deixando de ser pobre. Um certo dia havia uma festa a que tinham de ir. Antes de partirem para a festa, a mulher disse a Namarasotha:

– Na festa a que vamos, quando dançares, não deverás virar-te para trás.

Namarasotha concordou e lá foram os dois. Na festa bebeu muita cerveja de farinha de mandioca e embriagou-se. Começou a dançar ao ritmo do batuque. A certa altura a música tornou-se tão animada que ele acabou por se virar.

E no momento em que se virou ficou como estava antes de chegar à casa da mulher: pobre e esfarrapado.

Eduardo Medeiros, Contos Populares Moçambicanos (1997)

A tradição oral de Moçambique destaca o casamento como um costume vital nesta cultura e a família como um elemento precioso. Esse conto provém deste costume, que é típico do norte do país e que consiste na incorporação de homens ao núcleo familiar feminino após o casamento.

A história retrata a pressão a que os homens adultos são submetidos para encontrar uma parceira e se casarem. Namarasotha é o retrato do homem solteiro, enquanto os passarinhos representam a sabedoria dos ancestrais.

Ao longo do caminho, o protagonista recebe conselhos que o impedem de se envolver em relacionamentos passageiros ou proibidos - metaforizados aqui pelos animais mortos que encontra.

Ao ouvir o canto dos pássaros, o homem encontrou a mulher dos seus sonhos e uma vida maravilhosa. Entretanto, ao recusar-se a satisfazer o único pedido da esposa, perdeu tudo a que tinha direito e foi forçado a regressar ao ponto de partida.

2. Qual o Motivo da Mudança de Pele da Cobra?

No princípio a morte não existia. A morte vivia com Deus, e Deus não queria que a morte entrasse no mundo. Mas a morte tanto pediu que Deus acabou concordando em deixá-la partir. Ao mesmo tempo fez Deus uma promessa ao homem: apesar de a morte ter recebido permissão para entrar no mundo, o Homem não morreria. Além disso, Deus prometeu enviar ao homem peles novas, que ele e sua família poderiam vestir quando seus corpos envelhecessem.

Pôs Deus as peles novas num cesto e pediu ao cachorro para levá-las ao homem e sua família. No caminho, o cachorro começou a sentir fome. Felizmente, encontrou outros animais que estavam dando uma festa. Muito satisfeito com sua boa sorte, pode assim matar a fome. Depois de haver comido fartamente, dirigiu-se a uma sombra e 43 deitou-se para descansar. Então a esperta cobra aproximou-se dele e perguntou o que é que havia no cesto. O cachorro lhe disse o que havia no cesto e por que o estava levando para o homem. Minutos depois o cachorro caiu no sono. Então a cobra, que cara por perto a espreitá-lo, apanhou o cesto de peles novas e fugiu silenciosamente para o bosque.

Ao despertar, vendo que a cobra lhe roubara o cesto de peles, o cachorro correu até o homem e contou-lhe o que acontecera. O homem dirigiu-se a Deus e contou-lhe o ocorrido, exigindo que ele obrigasse a cobra a devolver-lhe as peles. Deus, porém, respondeu que não tomaria as peles da cobra, e por isso o homem passou a ter um ódio mortal à cobra, e sempre que a vê procura matá-la. A cobra, por seu turno, sempre evitou o homem e sempre viveu sozinha. E, como ainda possui o cesto de peles fornecido por Deus, pode trocar a pele velha por outra nova.

Margaret Carey, Contos e Lendas da África (1981), trad. Antônio de Pádua Danesi

Nesta narrativa tradicional do Serra Leoa, África Ocidental, procura-se fornecer explicações sobre certos elementos da natureza.

De acordo com a lenda, o ser humano teria sido privado da imortalidade por conta da chegada da morte ao planeta, apesar de isso não ser desejo divino. Por causa dessa perda, as cobras foram capazes de roubar o poder de se renovarem ciclicamente e trocar de pele.

Muitos seres humanos experimentam sentimentos negativos diante das criaturas naturais, talvez em parte devido à sua esperteza e malícia. No entanto, esse dom natural delas pode ser usado para justificar esses sentimentos.

3. Todos Dependem da Fala

Certo dia, a boca, com ar vaidoso, perguntou:

– Embora o corpo seja um só, qual é o órgão mais importante?

Os olhos responderam:

– O órgão mais importante somos nós: observamos o que se passa e vemos as coisas.

– Somos nós, porque ouvimos – disseram os ouvidos.

– Estão enganados. Nós é que somos mais importantes porque agarramos as coisas, disseram as mãos.

Mas o coração também tomou a palavra:

– Então e eu? Eu é que sou importante: faço funcionar todo o corpo!

– E eu trago em mim os alimentos! – interveio a barriga.

– Olha! Importante é aguentar todo o corpo como nós, as pernas, fazemos.

Estavam nisto quando a mulher trouxe a massa, chamando-os para comer. Então os olhos viram a massa, o coração emocionou-se, a barriga esperou ficar farta, os ouvidos escutavam, as mãos podiam tirar bocados, as pernas andaram... Mas a boca recusou comer. E continuou a recusar.

Por isso, todos os outros órgãos começaram a ficar sem forças... Então a boca voltou a perguntar:

– Afinal qual é o órgão mais importante no corpo?

– És tu boca, responderam todos em coro. Tu és o nosso rei!

Aldónio Gomes, Eu conto, tu contas, ele conta... Estórias africanas (1999)

Uma lenda popular de Moçambique relata uma história de rivalidade. Quando os órgãos do corpo humano começam a competir para descobrir qual é o mais fundamental, cada um minimiza o papel dos outros para destacar o seu.

Ao final, o resultado é desastroso: ninguém come e eles começam a ficar cada vez mais fracos. A história mostra a importância de trabalhar juntos e colaborar para um objetivo comum.

O valor da comida não pode ser subestimado. É fundamental para a sobrevivência humana - como diz o ditado popular, "um saco vazio não se mantém em pé". Esta afirmação evidencia a importância de se alimentar adequadamente.

4. Os Reis de Gondar: Uma Dupla Dinastia

Era um dia como os de outrora... e um pobre camponês, tão pobre que tinha apenas a pele sobre os ossos e três galinhas que ciscavam alguns grãos de teff que encontravam pela terra poeirenta, estava sentado na entrada da sua velha cabana como todo fim detarde. De repente, viu chegar um caçador montado acavalo. O caçador se aproximou, desmontou, cumprimentou-o e disse:

— Eu me perdi pela montanha e estou procurando o caminho que leva à cidade de Gondar.

— Gondar? Fica a dois dias daqui — respondeu o camponês.

— O sol já está se pondo e seria mais sensato se você passasse a noite aqui e partisse de manhã cedo.

O camponês pegou uma das suas três galinhas, matou-a, cozinhou-a no fogão a lenha e preparou um bom jantar, que ofereceu ao caçador. Depois de comerem os dois juntos sem falar muito, o camponês ofereceu sua cama ao caçador e foi dormir no chão ao lado do fogo. No dia seguinte bem cedo, quando o caçador acordou,o camponês explicou-lhe como teria que fazer para chegar a Gondar:

— Você tem que se enfiar no bosque até encontrar um rio, e deve atravessá-lo com seu cavalo com muito cuidado para não passar pela parte mais funda. Depois tem que seguir por um caminho à beira de um precipício até chegar a uma estrada mais larga...

O caçador, que ouvia com atenção, disse:

— Acho que vou me perder de novo. Não conheço esta região... Você me acompanharia até Gondar? Poderia montar no cavalo, na minha garupa.

— Está certo — disse o camponês —, mas com uma condição. Quando a gente chegar, gostaria de conhecer o rei, eu nunca o vi.

— Você irá vê-lo, prometo.

O camponês fechou a porta da sua cabana, montou na garupa do caçador e começaram o trajeto. Passaram horas e horas atravessando montanhas e bosques, e mais uma noite inteira. Quando iam por caminhos sem sombra, o camponês abria seu grande guarda-chuva preto, e os dois se protegiam do sol. E quando por fim viram a cidade de Gondar no horizonte, o camponês perguntou ao caçador:

— E como é que se reconhece um rei?

— Não se preocupe, é muito fácil: quando todo mundo faz a mesma coisa, o rei é aquele que faz outra, diferente. Observe bem as pessoas à sua volta e você o reconhecerá.Pouco depois, os dois homens chegaram à cidade e o caçador tomou o caminho do palácio. Havia um monte de gente diante da porta, falando e contando histórias,até que, ao verem os dois homens a cavalo, se afastaram da porta e se ajoelharam à sua passagem. O camponês não entendia nada. Todos estavam ajoelhados, exceto ele e o caçador, que iam a cavalo.

— Onde será que está o rei? — perguntou o camponês. — Não o estou vendo!

— Agora vamos entrar no palácio e você o verá, garanto!

E os dois homens entraram a cavalo dentro do palácio.O camponês estava inquieto. De longe via uma fila de pessoas e de guardas também a cavalo que os esperavam na entrada. Quando passaram na frente deles, os guardas desmontaram e somente os dois continuaram em cimado cavalo. O camponês começou a ficar nervoso:

— Você me falou que quando todo mundo faz a mesma coisa... Mas onde está o rei?

— Paciência! Você já vai reconhecê-lo! É só lembrar que, quando todos fazem a mesma coisa, o rei faz outra.

Os dois homens desmontaram do cavalo e entraram numa sala imensa do palácio. Todos os nobres, os cortesãos e os conselheiros reais tiraram o chapéu ao vê-los.Todos estavam sem chapéu, exceto o caçador e o camponês, que tampouco entendia para que servia andar de chapéu dentro de um palácio.

O camponês chegou perto do caçador e murmurou:

— Não o estou vendo!

— Não seja impaciente, você vai acabar reconhecendo-o! Venha sentar comigo.

E os dois homens se instalaram num grande sofá mui-to confortável. Todo mundo ficou em pé à sua volta. O camponês estava cada vez mais inquieto. Observou bem tudo o que via, aproximou-se do caçador e perguntou:

— Quem é o rei? Você ou eu?

O caçador começou a rir e disse:

— Eu sou o rei, mas você também é um rei, porque sabe acolher um estrangeiro!

E o caçador e o camponês ficaram amigos por muitos e muitos anos.

Anna Soler-Pont, O príncipe medroso e outros contos africanos (2009)

O conto da Etiópia destaca as virtudes da amizade e da parceria como ingredientes indispensáveis para a felicidade humana.

Assistimos divertidos enquanto um homem do campo se tornava amigo do rei sem ter conhecimento de quem ele era. Quando ele chega ao castelo, fica surpreso e pergunta se o rei, de fato, é ele.

O rei encontrou um verdadeiro amigo devido à generosidade do camponês, que partilhou os seus alimentos e viajou por dois dias para guiar o caçador. Como recompensa, o rei decidiu retribuir a gentileza.

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5. Coração Solitário

O Leão e a Leoa tiveram três filhos; um deu a si próprio o nome de Coração-Sozinho, o outro escolheu o de Coração-com-a-Mãe e o terceiro o de Coração-com-o-Pai.

Coração-Sozinho encontrou um porco e apanhou-o, mas não havia quem o ajudasse porque o seu nome era Coração-Sozinho.

Coração-com-a-Mãe encontrou um porco, apanhou-o e sua mãe veio logo para o ajudara matar o animal. Comeram-no ambos.

Coração-com-o-Pai apanhou também um porco. O pai veio logo para o ajudar. Mataram o porco e comeram-no os dois. Coração-Sozinho encontrou outro porco, apanhou-o mas não o conseguia matar.

Ninguém foi em seu auxílio. Coração-Sozinho continuou nas suas caçadas, sem ajuda de ninguém. Começou a emagrecer, a emagrecer, até que um dia morreu.

Os outros continuaram cheios de saúde por não terem um coração sozinho.

Ricardo Ramos, Contos Moçambicanos (1979)

A narrativa tradicional moçambicana conta uma história desoladora que revela o valor da família e o quão necessário é ter alguém que nos ampara, nos guarda e nos acompanha.

O nome "Coração-Sozinho" foi a primeira decisão tomada pelo pequeno leão, e ele parecia estar afirmando que não precisava de ninguém, pois sua solidão seria eterna.

Os irmãos dos quais o leãozinho estava separado recebiam os ensinamentos do pai e da mãe, evoluindo ao longo do tempo. Mas como ele estava só, não tinha a mesma sorte. Só então ele percebeu que precisamos nos apoiar uns aos outros para sobreviver neste mundo.

6. Onde o Sol e a Lua Residiram no Céu

Há muito tempo, o sol e a água eram grandes amigos e viviam juntos na Terra. Habitualmente o sol visitava a água, mas esta jamais lhe retribuía a gentileza. Por fim, o sol quis saber qual o motivo do seu desinteresse e a água respondeu que a casa do sol não era grande o bastante para que nela coubessem todos com que vivia e, se aparecesse por lá, acabaria por despejá-lo de sua própria casa.

— Caso você queira que eu realmente o visite, terá que construir uma casa bem maior do que a que tem no momento, mas desde já fique avisado de que terá que ser algo realmente muito grande, pois o meu povo é bem numeroso e ocupa bastante espaço.

O sol garantiu-lhe que poderia visitá-lo sem susto, pois trataria de tomar todas as providências necessárias para tornar o encontro agradável para ela e para todos que o acompanhassem. Chegando em casa, o sol contou à lua, sua esposa, tudo o que a água lhe pedira e ambos se dedicaram com muito esforço à construção de uma casa enorme que comportasse sua visita.

Quando tudo estava pronto, convidaram a água para visitá-los.

Chegando, a água ainda foi amável e perguntou:

— Vocês têm certeza de que realmente podemos entrar?

— Claro, amiga água— respondeu o sol.

A água foi entrando, entrando e entrando, acompanhada de todos os peixes e mais uma quantidade absurda e indescritivelmente grande, incalculável mesmo, de criaturas aquáticas. Em pouco tempo a água já se encontrava nos joelhos.

— Vocês estão certos de que todos podem entrar? — insistiu preocupada.

— Por favor, amiga água — insistiu a lua.

Diante da insistência de seus anfitriões, a água continuou a despejar sua gente para dentro da casa do sol. A preocupação voltou quando ela atingiu a altura de um homem.

— Ainda posso entrar? — insistiu — Olha que está ficando cheio demais...

— Vai entrando, minha amiga, vai entrando — o sol realmente estava muito feliz com a sua visita.

A água continuou entrando e jorrando em todas as direções e, quando deram pela coisa, o sol e a lua viram-se forçados a subir para o alto do telhado.

— Acho que vou parar... —disse a água, receosa.

— O que é isso, minha água? — espantou-se o sol, mais do que educado, sem esconder uma certa preocupação.

A água continuou jorrando, empurrando seu povo para dentro, ocupando todos os cômodos da ampla casa, inundando tudo e, por fim, fazendo com que o sol e a lua, sem ter mais pra onde ir ou se refugiar, subissem para o céu, onde estão até hoje.

Júlio Emílio Braz, Sukulume e outros contos africanos (2008)

A lenda antiga da Nigéria explica por que existem estrelas no céu. Conta como elas chegaram ao alto para brilhar nosso mundo.

O sol, embora fosse muito amigo das águas, não conseguia convidá-las para entrar em sua casa, pois era tão grande que elas ocupariam todo o espaço. Apesar disso, as águas continuavam solicitando a presença do anfitrião para sua visita.

Ao notar a presença da visitante, o sol e a lua tentaram disfarçar, temerosos de causar alguma ofensa, e foram forçados a partir para o espaço. Esta história serve para nos lembrar que não devemos nos subordinar a outros, mesmo para agradar.

7. Explosão de Mabata-bata: Uma História de um Dia Inesquecível

De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.

O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que ficara órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das primeiras horas.

Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.“Deve ser foi um relâmpago”, pensou. Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?

Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntam os todos rios para nascerem da mesma vontade da água. O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança o seu voo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e a deita a sua urina.

Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se.

Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.

— Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.

A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saída. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio na boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes. Em casa, o tio adivinhava-lhe o futuro:

— Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca.

E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que ia deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga, frutos do djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.

Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul porta de casa. Quando chegou ela disparou a aflição:

— Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.

— O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.

— Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos...

— Aconteceu brincadeiras dele, mais nada.

Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.

— Boa noite, precisam alguma coisa?

— Boa noite. Vimos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde. Foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.

Outro soldado acrescentou:

— Queremos saber onde está o pastor dele.

— O pastor estamos à espera — respondeu Raul. E vociferou:

— Malditos bandos!

— Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. E bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.

Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?

— Avó: eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se. E preciso juntar os bois enquanto é cedo.

— Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.

Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: onde o Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.

Chegou ao rio e subiu as grandes pedras. A voz superior, ordenou:

— Azarias, volta. Azarias!

Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.

— Apareça lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.

Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos, habituados à penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.

— Azarias?

Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.

— Sou eu. Raul

Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estoirava com ele também.

— Volta em casa, avó!

— O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.

E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.

— És tu, Azarias. Volta comigo, vamos para casa.

— Não quero, vou fugir.

O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto para saltar e agarrar as goelas do sobrinho.

— Vais fugir para onde, meu filho?

— Não tenho onde, avó.

— Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados — precipitou-se a voz rasteira de Raul.

— Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria.

E voltando-se para o pastor:

— Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar os animais.

— Não preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.

Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.

— Como ? Os bois estão aí?

— Sim, estão.

Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade do Azarias.

— Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?

A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prémio e pediu ao miúdo que escolhesse.

— O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.

Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.

— Fala lá o seu pedido.

— Tio: próximo ano posso ir na escola?

Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:

— Vais, vais.

— É verdade, tio?

— Quantas bocas tenho, afinal?

— Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.

— Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.

O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho: era o grito do fogo estourando.

Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:

— Vens pousar quem, ndlati?

Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.

— Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?

E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem da sua chama.

Mia Couto, Vozes anoitecidas (1987)

Mia Couto é considerado um dos maiores autores da literatura moçambicana contemporânea, fornecendo aos leitores do mundo todo uma visão das crenças e costumes locais.

Neste conto, o protagonista é um menino órfão, que é obrigado a trabalhar duro para contribuir para sua família. Certa vez, um dos bois da manada pisou em uma mina, o que indicava a presença de uma guerra por ali. Infelizmente, o boi explodiu na hora.

O menino Azarias estava convencido de que a explosão foi causada pelo "ndlati", que na mitologia surge como um enorme pássaro que lança relâmpagos. Esta obra destaca as duras condições de vida do menino, que não tinha infância e era impedido de frequentar a escola.

Rebeca Fuks
Escrito por Rebeca Fuks

É graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), possui mestrado em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutorado em Estudos de Cultura pelas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).