O poeta e compositor Vinicius de Moraes é bastante reconhecido pelo seu trabalho infantil no Brasil.
No ano de 1970, ele publicou o livro A arca de Noé, dedicado aos seus filhos Pedro e Suzana. Neste trabalho, o autor reuniu alguns poemas para crianças que havia escrito na década de 50, inspirados na história bíblica da arca de Noé.
Em 1980, Vinicius de Moraes e Toquinho uniram suas habilidades para criar o álbum A arca de Noé. Esse projeto musical foi lançado pouco antes da morte de Vinicius, que aconteceu nesse mesmo ano.
Veja abaixo alguns poemas de nosso projeto.
1. A Importância do Relógio
Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Tic-tac…
No poema de Vinicius de Moraes, a linguagem é construída com ritmo, caráter lúdico e simplicidade. A onomatopeia é usada como recurso estilístico para criar um texto com som e imaginação.
É praticamente possível "ouvir" o tique-taque do relógio. Por meio de palavras representativas da noção temporal, o poeta busca expressar a sua relação com a peça que mede o tempo.
Embora se trate de um poema para crianças, há nele uma nota de tristeza. Seus versos "Que já estou muito cansado" e "Já perdi toda alegria" são prova disso.
Assista ao vídeo com Walter Franco cantando a música!
2. A Morada
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero.
A Casa é um dos poemas mais reconhecidos na infância brasileira. Diversas análises foram feitas sobre o seu real significado. Por vezes, as interpretações podem ser bastante fantasiosas.
A interpretação mais popular de "Casa" é que ela é uma metáfora para o útero de uma mulher grávida, o primeiro "lar" de um ser humano. No entanto, essa não é a intenção do autor, Vinicius de Moraes.
Inspirado na Casapueblo, construída pelo artista e arquiteto uruguaio Carlos Vilaró em Punta Ballena, Uruguai, nos anos 60, o músico Toquinho compôs esse poema. A peculiar estrutura da Casapueblo, como é conhecida, impressionou Toquinho e serviu de inspiração para a composição.
Esse poema nos oferece uma descrição criativa de uma casa cheia de impossibilidades e contradições. Ao ler ou ouvir o texto, nosso imaginário cria, de maneira divertida, formas de se conseguir habitar aquele espaço, mesmo que de forma apenas mental.
O Grupo Boca Livre se apresentou cantando sua versão musicada.
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3. A Majestade do Leão
Leão! Leão! Leão!
Rugindo como o trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação
Tua goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda.
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto.
Leão alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro.
Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna.
Leão! Leão! Leão!
Foi Deus que te fez ou não?
O salto do tigre é rápido
Como o raio; mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o Leão dá.
Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte.
Pois bem, se ele vê o Leão
Foge como um furacão.
Leão se esgueirando, à espera
Da passagem de outra fera…
Vem o tigre; como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranquilo
O leão fica olhando aquilo.
Quando se cansam, o leão
Mata um com cada mão.
Leão! Leão! Leão!
És o rei da criação!
Neste poema, o autor nos faz contemplar a figura do leão, monarca da selva, exaltando sua grandeza e força. O leão é apresentado como a representação do mundo selvagem, num cenário majestoso.
Vinicius imagina os animais na selva para tentar descobrir quem é o mais forte. Comparando o leão ao tigre, rinoceronte e leopardo, ele conclui que o rei da selva é o leão. A narrativa nos leva a imaginar os bichos no meio da floresta, lutando para descobrir quem é o mais forte.
É interessante notar que, embora se trate de um poema infantil, temas como caça e morte são abordados, como nos versos "Deu um pulo, e era uma vez um cabritinho montês" e "Quando se cansam, o leão mata um com cada mão".
Assista ao vídeo da música executada por Caetano Veloso.
4. A Vida do Pato
Lá vem o pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o pato
Para ver o que é que há.
O pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco
Pulou do poleiro
No pé do cavalo
Levou um coice
Criou um galo
Comeu um pedaço
De jenipapo
Ficou engasgado
Com dor no papo
Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela.
No poema O pato, Vinicius trabalha brilhantemente com as palavras, artesanalmente criando oralidade e ritmo. Ele emprega rimas cuidadosas para compor um texto de fácil memorização, entretanto, em nada superficial.
O pato travesso retratado pelo autor adquire um grande significado no imaginário infantil. A trajetória da história é contada na sequência dos acontecimentos, desde o primeiro momento até o momento em que o pato "vai para a panela". Todas essas peripécias se unem para formar um fio condutor que encanta os pequenos.
A cena presente no poema nos traz elementos fantasiosos e de natureza surpreendente, oferecendo assim uma experiência estimulante. Isso torna ainda mais interessante a leitura da obra.
Assista à versão musicalizada no vídeo abaixo:
5. Um Felino Amigável
Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, para
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.
Neste poema, o autor exalta a figura do gato doméstico, destacando sua docilidade e sua elegância. O gato é retratado pulando, caçando e descansando, demonstrando toda sua destreza. É um animal tão presente nas nossas vidas que merece esse lindo reconhecimento.
O texto desafia as crianças a serem observadoras, especialmente no que diz respeito ao comportamento dos animais. Neste caso, o gato é o exemplo usado para ilustrar a importância de prestar atenção em tudo que acontece ao nosso redor.
Dê uma olhada no vídeo de Mart'Nália interpretando a canção "O Gato".
6. A Beleza das Borboletas
Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam
Na luz
As belas
Borboletas.
Borboletas brancas
São alegres e francas.
Borboletas azuis
Gostam muito de luz.
As amarelinhas
São tão bonitinhas!
E as pretas, então…
Oh, que escuridão!
Vinicius começa seu poema listando várias cores, criando um mistério para o leitor. Apenas depois ele revela que era sobre borboletas.
Retratando esses estes insetos, ele atribui características diferentes a cada um deles com base nas suas cores. É fascinante notar que estas qualidades são descritas como sendo próprias do ser humano, como pode ser notado nos adjetivos "francas" e "alegres".
O autor recorre à rima e à repetição, conferindo um tom musical ao texto e facilitando sua memorização. Estamos diante de um texto descritivo, que não apresenta uma narrativa ou enredo.
Assista ao vídeo com a cantora Gal Costa interpretando a música baseada no poema.
7. A Beleza das Abelhas
A abelha-mestra
E as abelhinhas
Estão todas prontinhas
Para ir para a festa
Num zune que zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar com o jasmim
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu
A abelha-rainha
Está sempre cansada
Engorda a pancinha
E não faz mais nada
Num zune que zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar com o jasmim
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu.
Neste poema, somos transportados ao mundo das abelhas, dando-nos a oportunidade de contemplar como elas se organizam para cumprir a sua tarefa de colher mel.
O poeta detalha uma estrutura hierárquica entre os insetos, colocando a "abelha-mestra", as "abelhinhas" e a "abelha-rainha" em um ambiente alegre. Porém, fica claro que a abelha-rainha se beneficia sem grandes esforços, pois é ela que se alimenta.
O uso de diminutivos é uma excelente estratégia para se aproximar das crianças, assim como a onomatopeia, que imita sons produzidos pelas abelhas através do verso "num zune que zune".
Ouça uma versão musical com o cantor Moraes Moreira!
8. A Pequena Elefante
Onde vais, elefantinho
Correndo pelo caminho
Assim tão desconsolado?
Andas perdido, bichinho
Espetaste o pé no espinho
Que sentes, pobre coitado?
— Estou com um medo danado
Encontrei um passarinho
No diálogo entre Vinicius e um elefantinho, o poeta cria uma cena imaginária que estimula a imaginação do público. O acontecimento é construído na mente de quem o ouve.
O elefantinho, caminhando triste e desconsolado, encontra o poeta. O poeta nota o humor triste do animal e pergunta o motivo. A delicadeza com que o autor se refere ao animal, usando o diminutivo "elefantinho", faz com que as crianças se identifiquem com a situação.
O elefantinho responde que está apavorado com um passarinho. Esta foi uma conclusão curiosa e surpreendente, porque é impensável que um enorme animal como o elefante tenha medo de um pássaro tão pequeno.
Adriana Calcanhoto realizou uma adaptação musical do poema, que está disponível para conferir abaixo:
9. Aventuras no Peru
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro Peru!
O Peru foi a passeio
Pensando que era pavão
Tico-tico riu-se tanto
Que morreu de congestão.
O Peru dança de roda
Numa roda de carvão
Quando acaba fica tonto
De quase cair no chão.
O Peru se viu um dia
Nas águas do ribeirão
Foi-se olhando foi dizendo
Que beleza de pavão!
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro Peru!
A poesia do peru utiliza a onomatopeia para recriar uma oralidade divertida. Os personagens são apresentados como se tivessem sentimentos e aspirações, como uma representação da humanidade.
O peru acreditava que era um pavão, que é um animal muito mais belo e elegante. O tico-tico achou isso hilário, mas o peru não se desencorajou e continuou querendo se transformar em um pavão.
No poema, há uma clara alusão ao mito grego de Narciso. Assemelhando-se ao mito, o peru observa-se refletido no ribeirão e se inebria de amor pela imagem que vê, diferente da realidade.
Confira o vídeo da música de Elba Ramalho!
10. O Pinguim Encantador
Bom-dia, Pinguim
Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim.
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu de jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.
No poema O pinguim, o interlocutor tem uma conversa com um pinguim, porém a resposta do animal não é revelada, deixando o leitor imaginá-la. Assim como no poema sobre o elefantinho, a dinâmica entre o homem e o animal é descrita de forma poética.
O animal se mostrava apressado, como se estivesse assustado. Porém, não havia necessidade de temer, pois a aproximação se dava somente pela curiosidade.
O poeta narra o pássaro de maneira criativa, descrevendo-o como se estivesse usando uma casaca - talvez devido às suas marcações preta e branca. Com isso, ele cria uma imagem interessante para o leitor da composição.
Ouça Chico Buarque interpretando a canção musicalizada!
11. A Encantadora Foca
Quer ver a foca
Ficar feliz?
É por uma bola
No seu nariz.
Quer ver a foca
Bater palminha?
É dar a ela
Uma sardinha.
Quer ver a foca
Fazer uma briga?
É espetar ela
Bem na barriga!
No poema A Foca, Vinicius de Moraes emprega a rima como recurso literário. Palavras como "foca" e "bola", "feliz" e "nariz", "palminha" e "sardinha" rimam entre si, bem como o último verso: "briga" e "barriga".
Ao imaginar um cenário de espetáculo aquático, vemos a foca fazendo malabarismos e batendo palmas para agradar ao público. Estes espetáculos com animais aquáticos costumam ter domadores que incentivam os bichos a executar alguns truques. Quem assiste tem a sensação de que os animais estão realmente divertidos e felizes.
Ao contarmos essa história, acabamos por gerar imagens mentais da foca, seja ela feliz e satisfeita, ou até mesmo brava por ter sido cutucada na barriga.
A versão musical de Toquinho para o poema pode ser vista no clipe abaixo:
12. A Brisa do Ar
Estou vivo mas não tenho corpo
Por isso é que não tenho forma
Peso eu também não tenho
Não tenho cor
Quando sou fraco
Me chamo brisa
E se assobio
Isso é comum
Quando sou forte
Me chamo vento
Quando sou cheiro
Me chamo pum!
O ar é exaltado pelo autor através de várias formas de expressão. O poema é quase como um jogo de charadas, com a estrutura do texto sendo criada para estimular a imaginação.
Vinicius oferece uma maneira interessante de apresentar às crianças as propriedades da matéria ao mostrar que o ar não tem forma, peso e cor.
No final do poema, o autor faz referência ao pum, um tema que as pessoas costumam evitar, por ser constrangedor. Entretanto, é um assunto com o qual as crianças lidam com maior familiaridade.
Confira o vídeo do poema musicalizado e cantado com a voz do Grupo Boca Livre!
Conhecendo Vinícius de Moraes
Nascido no Rio de Janeiro em 19 de outubro de 1913, Vinicius de Moraes foi muito reconhecido como poeta e compositor no Brasil.
Devido ao seu gosto pela poesia lírica, que tem grande harmonia com a música, o amigo Tom Jobim o apelidou de "poetinha".
Vinícius de Moraes consolidou significativas alianças musicais com Tom Jobim, Toquinho, Baden Powell, João Gilberto e Chico Buarque. Entre suas obras de maior destaque, encontram-se Garota de Ipanema, Aquarela, Arrastão, Eu sei que vou te amar, e outras composições de sucesso.
Em 9 de julho de 1980, Vinicius tomou um mal súbito enquanto finalizava com Toquinho o volume 2 do álbum infantil A arca de Noé, e acabou falecendo dentro da banheira de sua casa.