Análise dos 30 Melhores Poemas de Carlos Drummond de Andrade


Escrito por Rebeca Fuks

Considerado o maior poeta nacional do século XX, Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902 e faleceu em 17 de agosto de 1987. Sua obra é uma das mais importantes da literatura brasileira.

A produção literária de autores integrantes da segunda fase do modernismo brasileiro reflete as características do seu tempo, tais como o uso da linguagem corrente, o tratamento de temas do cotidiano e a abordagem de questões políticas e sociais.

A poesia de Carlos Drummond de Andrade o tornou imortal, tendo cativado o interesse e os elogios dos leitores modernos. Ele escreve bastante sobre temas atemporais, tais como o cotidiano nas grandes metrópoles, o sentimento de desolação, a recordação, a convivência em grupo e as ligações entre as pessoas.

A obra de Carlos Drummond de Andrade é conhecida por suas temáticas profundas que tratam das questões existenciais humanas. Suas composições são muito admiradas por terem uma poesia que reflete sobre o passado e o propósito da vida. Aqui você pode encontrar alguns dos poemas mais famosos de Drummond de Andrade, com análises e comentários.

Ao Longo do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

Provavelmente, o poema mais célebre de Drummond, "No Meio do Caminho", é conhecido por sua singularidade temática. Publicado em 1928, na Revista da Antropofagia, este poema expressa o espírito modernista que busca unir a poesia à vida diária.

A referência aos desafios vividos pelo protagonista, representados por uma pedra que barra seu caminho, foi alvo de críticas por parte de alguns por apresentar redundâncias.

No entanto, "Pedra" entrou para o registro da literatura brasileira, o que demonstra que a poesia não deve se limitar somente aos padrões tradicionais e pode abordar qualquer assunto, até mesmo uma pedra.

Sete Faces de um Poema

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus,

pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Ao ler este poema, o leitor logo se apercebe de que o sujeito se identifica como "Carlos", o primeiro nome de Drummond. Isto dá à composição uma dimensão autobiográfica e estabelece uma ligação entre o autor e o seu sujeito.

Ele se apresenta desde o primeiro verso como alguém "marcado por um anjo torto", apontando para a predestinação que o impele a não se enquadrar e a ser diferente. Ao longo das sete estrofes é possível perceber sua multiplicidade e contradição de sentimentos e estados de espírito.

Há uma aparência de força e resiliência, mas, ao mesmo tempo, o sentimento de inadequação e solidão do indivíduo é evidente. Ele tem poucos, raros amigos, e sente-se assombrado pela sua própria solidão.

Na terceira estrofe, é feita uma clara referência à multidão que habita a cidade, como se fossem "pernas" em movimento. Isso expressa o sentimento de solidão que ocorre quando nos vemos imersos em meio a uma grande população, acompanhado de desespero.

Ele se compara com Jesus Cristo, que, ao enfrentar a provação, questionou ao Pai por que foi abbandonado. Esta comparação reflete o sentimento de desamparo e fraqueza que é sentido perante a Deus.

Enquanto bebe e olha para a lua noite, a poesia parece ser a resposta para aquela sensação de vazio. Escrever versos é como um desabafo, onde se sente vulnerável e profundamente emocionado. Porém, mesmo assim, não há como negar que a poesia não seja a solução para tudo.

Dança da Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

Esta composição, intitulada "Quadrilha", traz referências à dança europeia do mesmo nome, tornada tradicional nos festejos juninos brasileiros. Os casais, vestidos com trajes característicos, dançam em grupo, guiados por um mestre de cerimônias que propõe diversas brincadeiras.

A partir de uma metáfora, o poeta retrata o amor como uma dança, onde os pares se alternam, e seus desejos não conseguem se encontrar. Os três primeiros versos também se encaixam nessa representação, pois todas as personagens sofreram de amores não correspondidos - a única exceção é Lili, que "não amava ninguém".

Nos quatro versos finais, podemos constatar que todos aqueles romances acabaram em fracasso. Lili foi a única que teve um final feliz, casando-se. A ironia da situação parece ser uma sátira sobre a dificuldade de encontrar o amor verdadeiro, e o quanto é difícil ter um relacionamento correspondido. É como se fosse uma loteria, onde apenas um é sorteado para ter a felicidade.

A Vida de José

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio — e agora?

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde?

"José", um dos mais famosos poemas de Drummond, descreve a solidão de um indivíduo na cidade grande, sua ausência de esperança e a sensação de estar desorientado. O eu lírico faz perguntas a si próprio, tentando encontrar um objetivo.

O nome José, muito usado na língua portuguesa, representa um sujeito coletivo, nos fazendo lembrar da realidade de muitos brasileiros. Estes enfrentam privações e lutam diariamente por um futuro melhor.

Neste momento de reflexão, aquilo que fica claro é um tom negativo, como se o tempo tivesse destruído tudo ao seu redor. Palavras como "acabou", "fugiu" e "mofou" corroboram esta ideia. Ao pensar em soluções ou formas de sair desta situação, o sujeito se vê sem alternativas que possam dar certo.

Mesmo sem a ajuda de Deus ou o apoio dos homens, o sujeito tem consciência de sua força e resistência. Nada, nem mesmo o passado ou a morte, servem como abrigo; assim, ele segue em frente, desafiando tudo e todos, mesmo sem saber para onde. "Você é duro, José!" - e isso é bem verdade.

O Poder do Amor

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer, amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal,

senão rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o cru,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e

uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,

e na secura nossa amar a água implícita,

e o beijo tácito, e a sede infinita.

O homem é visto como um ser social, cujo destino é estabelecer relações e amar. Estas ações permitem que ele crie laços com o seu semelhante. A comunicação é necessária para que isso aconteça.

O amor é descrito como algo que pode mudar, passar e desaparecer, mas sempre há a esperança de que um dia possa renascer. Mesmo quando parece estar perdido, é importante acreditar que ainda existe uma possibilidade de que seja restaurado. Estas ideias de mudança, ciclicidade e renovação são as principais características da dimensão do amor.

Afirmando que o único propósito do ser humano é a salvação, o sujeito descreve que isso só é possível através do amor e da relação com o próximo, mesmo que se sinta sozinho no mundo.

É necessário aprender a amar tudo o que existe, desde o que é "trazido pelo mar" até o que é "sepultado" - tanto o que nasce quanto o que morre. Admirar e respeitar a realidade e a natureza é importante, pois é isso que nos destina.

Cumprir o objetivo de amar exige teimosia e paciência por parte do indivíduo. Ao conhecer sua sede de amor incontável, deve-se resistir ao desamor e procurar amar ainda mais.

Suportando o Mundo em Seus Ombros

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

Em 1940, o poema de Sentimento do Mundo foi publicado. Escrito na década de 1930, no auge da Segunda Guerra Mundial, ele reflete uma temática social, retratando um mundo marcado por desigualdades e dor.

A solidão era inevitável, dado o cenário da vida do sujeito: sem amor, religião, amigos ou emoções. Para suportar tanta violência e morte, ele tinha que se tornar insensível. Dessa forma, a única preocupação era trabalhar e sobreviver, deixando seu coração seco.

Apesar da narrativa ter um tom pessimista, surge uma lufada de esperança sobre o futuro através da "mão de uma criança", que, ao juntar as imagens da velhice e do nascimento, nos remete ao ciclo da vida e à sua capacidade de renovação.

No final da poesia, como se estivesse transmitindo uma lição, é afirmado que "a vida é uma ordem" e que devemos vivê-la com simplicidade, plenamente presente no momento.

A Devastação

Os amantes se amam cruelmente

e com se amarem tanto não se veem.

Um se beija no outro, refletido.

Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados

pelo mimo de amar: e não percebem

quanto se pulverizam no enlaçar-se,

e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma

que os passeia de leve, assim a cobra

se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.

Deixaram de existir, mas o existido

continua a doer eternamente.

A partir do título, é possível identificar a visão negativa do sujeito a respeito dos relacionamentos amorosos. O amor é descrito como "destruição" e as relações como algo cruel, onde o outro é visto como uma extensão de si mesmo. Os casais deixam de se ver como indivíduos separados, lutando entre si.

O amor, em vez de unir e aproximar os amantes, os leva a comportamentos destrutivos. Estão tão cegos que não percebem que, juntos, se afastam do mundo social. Esse sentimento, que na verdade deveria uni-los, os faz extinguir-se e anular-se mutuamente.

Destruídos, guardam a memória do amor como uma "cobra" que os persegue, mordendo cada vez que a lembrança de tudo o que viveram surge. Mesmo com o passar do tempo, as marcas das mordidas ainda doem e a recordação persiste.

Explorando o Medo no Congresso Internacional

Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,

existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,

o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,

o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,

cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,

cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.

Depois morreremos de medo

e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

A temática social e política do "Congresso Internacional do Medo" reflete o contexto histórico de sua criação, após a Segunda Guerra Mundial. Os poetas e escritores da época foram confrontados com a enorme dor e insuficiência do discurso para lidar com a morte e a barbárie desta tragédia.

O terror e a petrificação eram sentidos ao redor do globo, dominando qualquer outro sentimento, como o amor ou o ódio. Isso resultou na desunião, na solidão e na indiferença, as quais, por sua vez, selaram os abraços.

A humanidade ainda não superou toda a dor que presenciou, vivendo em medo e ignorando todos os outros sentimentos.

A repetição que se encontra em todo o poema sugere que aquela insegurança persistente e aquela obsessão inevitavelmente levarão as pessoas à morte, e ainda se propagarão após elas, em forma de "flores amarelas e tímidas".

Drummond reflete sobre a necessidade de nos curarmos como humanidade e recomeçarmos a viver de forma diferente.

Deliciosas Receitas para o Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo

cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,

Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido

(mal vivido talvez ou sem sentido)

para você ganhar um ano

não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;

novo

até no coração das coisas menos percebidas

(a começar pelo seu interior)

novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,

você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,

não precisa expedir nem receber mensagens

(planta recebe mensagens?

passa telegramas?)

Não precisa

fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar arrependido

pelas besteiras consumadas

nem parvamente acreditar

que por decreto de esperança

a partir de janeiro as coisas mudem

e seja tudo claridade, recompensa,

justiça entre os homens e as nações,

liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

direitos respeitados, começando

pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo

que mereça este nome,

você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,

mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo

cochila e espera desde sempre.

No presente texto, o sujeito lírico parece se dirigir diretamente ao leitor ("você"). Ele busca dar conselhos e compartilhar sua experiência, desejando que o novo ano traga transformações extraordinárias.

Que este seja um ano diferente dos anteriores! Vamos nos esforçar para obter uma mudança real, que vá muito além do que se vê na superfície, e que gere um novo futuro para nós. Não é hora de desperdiçar mais tempo, é hora de agir!

Afirma-se que a transformação deve começar por cada um de nós. É preciso nos cuidarmos, descontrair, conhecer a nós próprios e aprimorar-nos; isso pode ser alcançado sem a necessidade de luxo, entretenimento exterior ou companhia.

Na segunda estrofe, o autor incentiva o leitor a não se lamentar por seus erros nem achar que um novo ano será a cura para todos os seus problemas. É inútil se arrepender de tudo o que se fez; não haverá solução miraculosa e instantânea.

A fim de ter um ano melhor, é necessário ter merecimento. Escolhas conscientes devem ser feitas para mudar a si mesmo e, com muito trabalho, alterar a realidade.

O Mundo dos Sentimentos

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microscopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer

esse amanhecer

mais noite que a noite.

O poema "publicado em 1940, na ressaca da Primeira Guerra, reflete um mundo profundamente abalado pelo terror do fascismo. Nesse contexto, o sujeito apresentado é frágil, pequeno e humano, com "apenas duas mãos" para carregar o "sentimento do mundo", algo de enorme, avassalador. Ao seu redor, o poema aponta para a vulnerabilidade da vida e a inevitabilidade da morte.

Sentindo-se deslocado do cenário de guerras e mortes, o narrador expressa sua perplexidade em relação à luta política ao usar o termo "camaradas". É através desta palavra que ele enfatiza a necessidade de lutar por uma causa maior: a sobrevivência.

O Amor Sem Razão

Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo

bastante ou de mais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.

A assonância entre "sem" e "cem" no título do poema é uma forte indicação do significado da composição. Aqui, a mensagem é clara: mesmo que não existam razões suficientes para amar alguém, esse amor será sempre verdadeiro.

O amor é incontrolável e não precisa ser explicado ou justificado. É possível amar independente de qualquer retribuição ou condição. Devastador e puro, o amor não é regido por regras ou orientações, ele simplesmente existe e tem um valor intrínseco.

Declarando que consegue vencer a morte, o sentimento amoroso é contraditório e volátil, mas é justamente isso que lhe confere encanto e mistério. Muitas vezes, ele desaparece sem aviso prévio.

Eternamente

Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento.

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

— mistério profundo —

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.

O sujeito está profundamente abalado e triste, questionando o motivo de Deus levar as mães e deixar os filhos para trás. Ele descreve a figura materna como algo maior que a própria vida, uma "luz que nunca se apaga". Para ele, a mãe não tem limites.

O uso repetido do adjetivo "puro" sublinha o fato de que a relação entre mães e filhos é algo único e grandioso. Por isso, o eu lírico não consegue aceitar a morte de sua mãe, pois ela não se encaixa na definição de "breve", que significa que algo é efêmero. Ao invés disso, ele acredita que ela é imortal, pois está perpetuada na sua memória, e continua sendo uma presença constante em seus dias.

A vontade de Deus é algo desconhecido, um "mistério profundo" que é intransponível pelo ser humano. Contrariamente à forma como o mundo opera, essa pessoa se coloca como se fosse o "Rei" e afirma que, se estivesse no comando, não permitiria que as mães morressem.

Mesmo depois de crescido, o filho nunca deixa de precisar do amor maternal. O desejo de reverter a ordem natural dos fatos, como algo infantil, reforça essa necessidade. A mãe sempre dará colo para seu "filho velho embora, / será pequenino".

O poema assinala ao sujeito uma dupla solidão e desamparo. Primeiro, ele perde sua mãe; segundo, se vê incapaz de compreender e aceitar a dor que sente. Isso também leva ao questionamento de sua relação com Deus.

Amor à Espera na Porta

Cantiga do amor sem eira

nem beira,

vira o mundo de cabeça

para baixo,

suspende a saia das mulheres,

tira os óculos dos homens,

o amor, seja como for,

é o amor.

Meu bem, não chores,

hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta

o amor bate na aorta,

fui abrir e me constipei.

Cardíaco e melancólico,

o amor ronca na horta

entre pés de laranjeira

entre uvas meio verdes

e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,

meu amor, não te atormentes.

Certos ácidos adoçam

a boca murcha dos velhos

e quando os dentes não mordem

e quando os braços não prendem

o amor faz uma cócega

o amor desenha uma curva

propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro

o amor subiu na árvore

em tempo de se estrepar.

Pronto, o amor se estrepou.

Daqui estou vendo o sangue

que escorre do corpo andrógino.

Essa ferida, meu bem,

às vezes não sara nunca

às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor

irritado, desapontado,

mas também vejo outras coisas:

vejo corpos, vejo almas

vejo beijos que se beijam

ouço mãos que se conversam

e que viajam sem mapa.

Vejo muitas outras coisas

que não ouso compreender...

O poema aborda as mudanças que a paixão provoca nos comportamentos de homens e mulheres. Uma simples "cantiga de amor sem eira / nem beira" consegue provocar transformações profundas, inverter a ordem das coisas e desafiar as normas sociais. O amor gera emoções contraditórias no sujeito lírico, mas, ao mesmo tempo, é capaz de aproximá-lo de seu par e conferir-lhe um poder mágico.

O amor aqui surge como uma figura andrógina que penetra a casa e o coração do narrador, até afetar sua saúde ("cardíaco e melancólico").

A contrastante oposição entre as "uvas meio verdes" e os "desejos já maduros" sugere de forma poética a desilusão que muitas vezes os amantes sofrem devido às suas esperanças românticas. Por mais ácida que seja, a experiência do amor é capaz de dar doçura à boca do que o sente.

Amor é a figura selvagem e esperta como um “bicho instruído”, que corre todos os riscos, mesmo que enfrente sofrimento e perda. A metáfora retratada aqui, com a figura da árvore caindo, é a de que, mesmo com toda a sua determinação corajosa, o amor às vezes é destruído.

Utilizando um tom divertido e quase infantil, o sujeito aparenta não dar grande importância ao sofrimento, entendendo-o como algo normal no meio das aventuras e desventuras diárias.

Acreditando que a imagem do amor partido e manchado no chão representa o coração destroçado do eu lírico, aqui temos uma conclusão trágica que deixa em seu rastro uma cicatriz que pode ou não sumir algum dia. Embora seu sentimento esteja ferido e "irritado, desapontado", o eu lírico ainda encontra esperança nos novos amores que podem surgir.

Abraço de Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

Esta composição é uma espécie de arte poética que expressa os objetivos e princípios do autor como escritor. Se distanciando de movimentos e tendências literárias anteriores, ele declara que não se interessa por um "mundo caduco", bem como não vê o "mundo futuro" como uma fonte de inspiração. A única coisa que lhe importa é o presente e aqueles que o cercam.

Em desafio aos velhos modelos, tópicos e formas tradicionais, surge uma nova direção. O foco é seguir ao passo com o presente, produzir obras que retratem sua realidade, e expressar livremente as perspectivas e pontos de vista.

A Eternidade do Amor

Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais.

Eu era grego, você troiana,

troiana mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar seu irmão.

Matei, brigámos, morremos.

Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos.

Na porta da catacumba

encontrei-te novamente.

Mas quando vi você nua

caída na areia do circo

e o leão que vinha vindo,

dei um pulo desesperado

e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,

flagelo da Tripolitânia.

Toquei fogo na fragata

onde você se escondia

da fúria de meu bergantim.

Mas quando ia te pegar

e te fazer minha escrava,

você fez o sinal-da-cruz

e rasgou o peito a punhal...

Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)

fui cortesão de Versailles,

espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira...

Pulei muro de convento

mas complicações políticas

nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,

remo, pulo, danço, boxo,

tenho dinheiro no banco.

Você é uma loura notável,

boxa, dança, pula, rema.

Seu pai é que não faz gosto.

Mas depois de mil peripécias,

eu, herói da Paramount,

te abraço, beijo e casamos.

Logo nos dois primeiros versos, é de se perceber que o sujeito e sua amada são almas gêmeas, cujo destino é nutrido de encontros e desencontros ao longo dos tempos. Enquanto sentem amor um pelo outro, vivem paixões proibidas em todas as suas reencarnações, sempre condenadas a nascerem como inimigos naturais - seja como grego e troiana, ou como romano e cristão.

Em todas as fases da vida, as histórias de Romeu e Julieta terminam de forma trágica, seja por meio de assassinatos, guilhotinas ou até mesmo de suicídio. No início do poema, o sujeito descreve todas as dificuldades pelas quais o casal passou, mostrando os desafios que eles tiveram que superar.

Em contraste, a última estrofe celebra a vida presente, destacando suas virtudes e apresentando-se como um parceiro ideal. Após todas as dificuldades, o único problema que ainda resta (o pai que não aprova o relacionamento) não parece tão grave. De maneira cômica, o poeta parece tranquilizar sua amada de que serão concedidos um final feliz à altura de contos de fadas.

O poema nos incentiva a nunca desistir do amor, mesmo quando parece inatingível. A mensagem é de esperança, de que devemos lutar pelaquilo em que acreditamos.

O Vazio da Falta

Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.

Em seu trabalho poético, Carlos Drummond de Andrade aborda a questão do passar do tempo, a memória e a saudade. O sujeito lírico destaca a diferença entre "ausência" e "falta", o que é típico de sua produção.

Ao refletir sobre sua jornada, ele chegou à conclusão de que a saudade não é sinônimo de ausência, mas sim de algo que permanece constantemente presente.

A ausência é algo que está sempre presente, guardado na memória, e que é assimilado como parte de nós. Tudo o que perdemos e sentimos saudade fica eternizado em nosso interior, tornando-se parte de nós.

A Necessidade de um Poema

É preciso casar João,

é preciso suportar Antônio,

é preciso odiar Melquíades

é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,

é preciso crer em Deus,

é preciso pagar as dívidas,

é preciso comprar um rádio,

é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,

é preciso estar sempre bêbado,

é preciso ler Baudelaire,

é preciso colher as flores

de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens

é preciso não assassiná-los,

é preciso ter mãos pálidas

e anunciar O FIM DO MUNDO.

Este poema emite uma crítica ao modo como a sociedade influencia o comportamento dos indivíduos, impondo aquilo que se espera e "necessita" ser feito.

Com ironia, Drummond demonstra até que ponto a sociedade impõe suas expectativas e regras de conduta. Ele também mostra como a pressão para casar, constituir família, e a competição e hostilidade no ambiente influenciam as nossas relações pessoais.

O patriotismo e a fé em Deus são citados na segunda estrofe, lembrando os discursos ditatoriais. A necessidade de “pagar” e “consumir” aponta para o sistema capitalista. Estes exemplos mostram como a sociedade nos manipula, nos isola e nos enfraquece por meio do medo.

A Engrenagem do Universo

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco o simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste… vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que tantos

monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mão pensas.

Sem dúvida, "A Máquina do Mundo" tem se tornado um dos poemas mais apreciados de Carlos Drummond de Andrade, sendo inclusive elegeu o melhor poema brasileiro de todos os tempos pela Folha de São Paulo. Um exemplo de majestade e beleza poética que exala em suas estrofes.

O universo e o modo como funciona é um assunto explorado por meio da ciência e também pela literatura medieval e renascentista. É sobre isso que Drummond faz referência ao canto X dos Lusíadas, na qual Tétis revela a Vasco da Gama os mistérios da criação e a força do destino.

No poema de Camões, é possível observar a alegria do homem ao receber conhecimento divino, enquanto no texto do autor brasileiro é evidente a fraqueza humana face à grandeza da criação divina.

O autor, nativo de Minas, se vê próximo ao seu sujeito lírico enquanto contempla a natureza. Momentaneamente, é atingido por uma epifania. Nas três primeiras estrofes, é evidenciado o seu estado emocional: desnorteado, desgastado e sem esperanças.

Ele se assustou ao entender súbita e inesperadamente o seu destino. O que se evidencia é a superioridade da perfeição divina e a inferioridade da decadência humana, estabelecendo um contraste entre o homem e a máquina.

Ao rejeitar a revelação, o indivíduo recusa entender o propósito de seu próprio ser. Isso acontece por fatores como cansaço, falta de curiosidade e interesse. Assim, ele permanece em um mundo caótico e desorganizado, que já lhe é familiar.

Mesmo Assim

Ainda que mal pergunte,

ainda que mal respondas;

ainda que mal te entenda,

ainda que mal repitas;

ainda que mal insista,

ainda que mal desculpes;

ainda que mal me exprima,

ainda que mal me julgues;

ainda que mal me mostre,

ainda que mal me vejas;

ainda que mal te encare,

ainda que mal te furtes;

ainda que mal te siga,

ainda que mal te voltes;

ainda que mal te ame,

ainda que mal o saibas;

ainda que mal te agarre,

ainda que mal te mates;

ainda assim te pergunto

e me queimando em teu seio,

me salvo e me dano: amor.

No poema, o sujeito lírico focaliza os desafios dos relacionamentos amorosos: as contradições e imperfeições. Embora existam problemas de comunicação, falta de verdadeira compreensão e intimidade, o amor se mantém inabalável.

Apesar de suas dúvidas sobre sua paixão ("ainda que mal te ame"), o sujeito não consegue deixar de "queimar" nos braços do outro. O amor é um sentimento ambíguo, que, ao mesmo tempo, representa a salvação e a ruína dele.

Última Canção

Oh! se te amei, e quanto!

Mas não foi tanto assim.

Até os deuses claudicam

em nugas de aritmética.

Meço o passado com régua

de exagerar as distâncias.

Tudo tão triste, e o mais triste

é não ter tristeza alguma.

É não venerar os códigos

de acasalar e sofrer.

É viver tempo de sobra

sem que me sobre miragem.

Agora vou-me. Ou me vão?

Ou é vão ir ou não ir?

Oh! se te amei, e quanto,

quer dizer, nem tanto assim.

A "Canção Final" retrata magistralmente as diferentes facetas de um término de relacionamento. O poeta começa o poema anunciando o fim da sua paixão pela mulher amada, mas em seguida contrapõe esse sentimento ao seu desejo de minimizar a intensidade do laço que os unia. Assim, ele expõe de forma poética as lutas internas que muitas vezes experimentamos ao concluir uma história de amor.

A atitude exposta nos versos é de desdém e indiferença. O eu lírico não consegue explicar os sentimentos que sentiu e até mesmo os deuses não sabem ao certo. Ao lembrar dos acontecimentos, a memória exagera tudo, afastando-o ainda mais da realidade.

A incerteza é sufocante para o eu poético e o vazio que consome é ainda mais intenso, pois já não resta nem a tristeza para tranquilizá-lo. O desespero é tão grande que não há sequer uma "miragem" de esperança para se segurar. Sem a rotina de "acasalar e sofrer", nada lhe resta a não ser desabafar.

Cada Homem e Seu Deus

Quando digo “meu Deus”,

afirmo a propriedade.

Há mil deuses pessoais

em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,

crio cumplicidade.

Mais fraco, sou mais forte

do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,

grito minha orfandade.

O rei que me ofereço

rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,

choro minha ansiedade.

Não sei que fazer dele

O poema apresenta uma reflexão sobre a relação do ser humano com a sua fé. Na primeira estrofe, o autor sugere que a conexão que temos com Deus é única para cada um, e que quando dizemos "meu Deus" referimo-nos a vários "deuses pessoais" diferentes para cada indivíduo. Esta ideia ilustra como cada pessoa desenvolve a sua fé de maneiras variadas.

No verso seguinte, o sujeito enfatiza o quanto o uso do pronome possessivo "meu" cria uma proximidade. Destaca, assim, a conexão entre o humano e o divino, remetendo à sensação de companhia e segurança.

A terceira estrofe sugere um paradoxo entre fragilidade e força: "Mais fraco, sou mais forte". Esta relação reflete a ligação deste sujeito com Deus. Embora reconheça a necessidade de proteção divina, encontra na fé a energia para superar a solidão e desigualdade, tornando-se mais forte.

Neste verso, o eu lírico expressa a sua fé como um meio de exteriorizar sua desesperança. Ele se sente sozinho, abandoando pelo seu Deus, com ninguém para se agarrar e nenhum destino certo.

Ao acreditar no Divino Criador, a sensação de estar preso sob sua soberana se faz presente, aceitando-se os seus decretos como parte de uma jornada para alcançar a liberdade. Ainda assim, trata-se de uma jornada repleta de desafios, sendo possível mudar o próprio destino, mas sem alterar totalmente a vida.

A poesia manifesta a "ansiedade" do sujeito e seu conflito entre acreditar e não acreditar em Deus. Ela exprime, de alguma forma, a vontade de crer, mas também o medo da descrença.

Revisitando a Memória

Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão

Mas as coisas findas

muito mais que lindas,

essas ficarão.

"Memória", como a canção diz, é tristeza e confusão. O sujeito poético admite desconsoladamente que é incapaz de superar o amor perdido e não pode compelir a si mesmo a fazê-lo.

O “sem sentido/ apelo do Não” é o que nos motiva a continuar amando, mesmo quando sabemos que não deveríamos. Ignorando o presente, que é efêmero, nos prendemos ao passado, que nunca é esquecido quando guardado na memória. É como se, mesmo depois de tudo acabado, pudéssemos revivê-lo infinitamente.

Preserve a Sua Vida

Carlos, sossegue, o amor

é isso que você está vendo:

hoje beija, amanhã não beija,

depois de amanhã é domingo

e segunda-feira ninguém sabe

o que será.

Inútil você resistir

ou mesmo suicidar-se.

Não se mate, oh não se mate,

Reserve-se todo para

as bodas que ninguém sabe

quando virão,

se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,

a noite passou em você,

e os recalques se sublimando,

lá dentro um barulho inefável,

rezas,

vitrolas,

santos que se persignam,

anúncios do melhor sabão,

barulho que ninguém sabe

de quê, praquê.

Entretanto você caminha

melancólico e vertical.

Você é a palmeira, você é o grito

que ninguém ouviu no teatro

e as luzes todas se apagam.

O amor no escuro, não, no claro,

é sempre triste, meu filho, Carlos,

mas não diga nada a ninguém,

ninguém sabe nem saberá.

Não se mate

O destinatário deste poema é Carlos. Uma vez mais, o autor parece refletir e se aconselhar a si mesmo, mostrando que há uma conexão entre ambos. Esta ligação ajuda a aliviar e acalmar a mente.

Com o coração partido, é consciente de que o amor é volátil, mudando como a vida mesma. Não há como escapar dessa verdade, nem mesmo por meio do suicídio. O que resta é aguardar "as bodas", o amor retribuído e estável. Para que possa seguir adiante, precisa acreditar no final feliz, ainda que ele nunca chegue.

Apesar dos pensamentos suicidas que o assolavam, caminhava firme, procurando manter-se "vertical". Na solidão da noite, tentava convencer-se a si mesmo que precisava de avançar com a sua vida. Reforçava a crença de que o amor "é sempre triste", sabendo que não poderia partilhar o seu sofrimento com ninguém.

O poema surpreende pelo desencanto, mas ainda assim mantém uma pequena chama de esperança que o sujeito lírico busca manter acesa. Embora o amor seja a causa de sua maior angústia, também é a última fonte de esperança na qual precisamos acreditar.

O Tempo Não Passa - Uma Reflexão

O tempo passa? Não passa

no abismo do coração.

Lá dentro, perdura a graça

do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido

nem tempo a economizar.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário

tanto o ontem como o agora,

e o teu aniversário

é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou

do tempo, não tem idade,

pois só quem ama

escutou o apelo da eternidade.

Neste poema, a diferença entre o tempo exterior, real, e o tempo interior do sujeito, a sua percepção, é muito evidente. Ao envelhecer e sentir as marcas exteriores da idade, o eu lírico não sente a passagem do tempo na própria memória, nem nos seus sentimentos, que permanecem os mesmos. Esta diferença de ritmos é consequência do amor que acompanha o eu lírico, pois a rotina deixa mais forte a união dos amantes, de tal modo que tudo se transforma em um só verso, em um só ser.

Anuncie, movido pela paixão, que o tempo deve ser dedicado ao amor: o mais alto propósito para o ser humano. Os amantes devem estar unidos, longe do cotidiano e do que não lhes diz respeito, e entregados ao amor. Não há necessidade de se preocupar com a passagem do tempo, pois "além do amor / não há nada".

O sentimento amoroso possui um poder mágico e transformador, pois é capaz de subverter regras universais, misturando passado, presente e futuro. Tão forte é esse apelo que ele nos faz querer sermos imortais. A composição retrata exatamente essa sensação: "só quem ama/ escutou o apelo da eternidade".

Acalento na Areia da Praia

Vamos, não chores.

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis carro, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho.

Neste poema, o autor expressa um desabafo, tentando acalmar seu próprio desconforto. O destinatário da mensagem de consolo, tratado na segunda pessoa, é tanto o leitor quanto o próprio autor. Ao refletir sobre o seu caminho e o passar do tempo, ele percebe que muito se foi ("a infância", a "mocidade"), mas a vida ainda segue seu curso.

Ela conheceu muitas paixões e sofreu perdas e desgostos ao longo de sua vida. No entanto, manteve a capacidade de amar, mesmo com todos os relacionamentos que não deram certo. Ao avaliar o que não realizou e o que não tem, ela recorda as dores e ofensas que já sofreu, revelando que ainda sente a dor desses acontecimentos.

No fim da sua existência, olha para trás e percebe onde errou. Testemunhando a injustiça social e esse "mundo errado", tentou lutar, mas suas ações foram "tímidas", não fazendo a diferença que esperava. Contudo, tem consciência de que fez o seu melhor e que outros trarão a mudança.

Lançando o seu olhar para o futuro e em direção às gerações vindouras, ele profundamente analisa sua existência e o cansaço que a vida lhe causou. Estava pronto para pular no mar e pôr fim a tudo. Murmurando uma canção de ninar para consolar seu espírito, ele espera a morte, como se fosse algo tão pacífico quanto o sono.

Uma Pequena Vila

Casas entre bananeiras

mulheres entre laranjeiras

pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

Devagar… as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

"Alguma Poesia" (1930) traz uma descrição simples e encantadora do dia-a-dia de uma pequena cidade rural. O vocabulário utilizado é banal e as rimas, quase infantis. A composição retrata com singelos versos os costumes do lugar.

Enumerando as casas, as árvores, os animais e as pessoas que encontra no seu campo de visão, o sujeito poético vai mostrando o seu cenário. Uma palavra chama a nossa atenção de modo especial: "devagar". Esta palavra nos transmite a sensação de se movimentarem no ritmo lento do cotidiano - sem surpresas ou exaltações.

A sensação de estar exatamente no mesmo lugar e não ver nada mudar é extremamente presente no eu-lírico. Os dias apenas se repetem e nada novo surge, causando nele uma sensação de desamparo que fica evidente no verso final da composição poética, como se fosse um desabafo dolorido.

A vida naquela cidadezinha é rotineira e descrita como "besta", por ser simples ou mesmo vazia. O indivíduo se sente deslocado e sozinho ali, desempenhando o papel de mera observadora.

O Ipê e o Tempo

Não quero saber de IPM, quero saber de IP.

O M que se acrescentar não será militar,

será de Maravilha.

Estou abençoando a terra pela alegria do ipê.

Mesmo roxo, o ipê me transporta ao círculo da alegria,

onde encontro, dadivoso, o ipê-amarelo.

Este me dá as boas-vindas e apresenta:

- Aqui é o ipê-rosa.

Mais adiante, seu irmão , o ipê-branco.

Entre os ipês de agosto que deveriam ser de outubro

mas tiveram pena de nós e se anteciparam

para que o Rio não sofresse de desamor, tumulto, inflação, mortes.

Sou um homem dissolvido na natureza.

Estou florescendo em todos os ipês.

Estou bêbado de cores de ipês, estou alcançando

a mais alta copa do mais alto ipê do Corcovado.

Não me façam voltar ao chão,

não me chamem, não me telefonem não me dêem dinheiro,

quero viver em bráctea, racemo, panícula, umbela.

Este é tempo de ipê.

Tempo de glória.

Em Amar se aprende amando (1985), o último livro de poemas do autor publicado em vida, o poema pode servir como um guia de orientação para lidar com tempos difíceis.

O sujeito poético manifesta sua posição já no início do poema, deixando claro que não se interessa por "IPM", que, traduzindo, é "Inquérito Policial Militar".

Nos deparamos com uma obra que se detém em questões sociais e políticas, usando seus versos para condenar a realidade de um país subjugado e governado por uma ditadura.

Ele considera a natureza, representada pelos belos ipês, como o que realmente vale o seu tempo e dedicação. Estas árvores existem por todo o Brasil e são um símbolo de resistência, pois perdem todas as suas folhas e, posteriormente, se enchem de coloridas flores. É, portanto, preferível ao militarismo.

O eu-lírico associa o florescimento dos ipês com alegria, força e esperança. Ele acredita que eles dariam flores antes do tempo para trazer felicidade para os habitantes do Rio de Janeiro. Contudo, esse encanto é contrastado com a realidade distópica do lugar: "desamor, caos, inflação, mortes".

O sujeito deseja se concentrar no que é belo, como o mundo natural que parece imune a tudo. Por isso, ele foge do contato humano e das dificuldades da vida, dissolvendo-se na natureza.

Uma Viagem Sentimental

Ponho-me a escrever teu nome

com letras de macarrão.

No prato, a sopa esfria, cheia de escamas

e debruçados na mesa todos contemplam

esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,

uma letra somente

para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...

E há em todas as consciências um cartaz amarelo:

"Neste país é proibido sonhar."

A composição possui um tom doce e inocente, que descreve um sujeito agindo como uma criança apaixonada. Ele escreve o nome de sua amada com as letras da sopa, mas fica desapontado ao perceber que está faltando um dos elementos.

Alguém à mesa repara na postura dele, que lhe parece absurda ou incompreensível. Indignado com a atitude, resolve chamar a atenção dele e pronuncia uma repreensão: questiona se ele está "sonhando", como se fosse algo inaceitável.

O eu-lírico desta poesia destaca a sua personalidade sonhadora e mostra como é perigoso sonhar numa sociedade que não lhe dá lugar. O último verso resume o fardo que o nosso povo teve de carregar durante tanto tempo: uma proibição de sonhar.

A Mina do Inglês

O inglês da mina é bom freguês.

Secos e molhados finíssimos

Seguem uma vez por mês

Rumo da serra onde ele mora.

Inglês invisível, talvez

Mais inventado que real,

Mas come bem, bebendo bem,

Paga melhor. O inglês existe

Além do bacon, do pâté,

Do White Horse que o projetam

No nevoento alto da serra

Que um caixeirinho imaginoso

Vai compondo, enquanto separa

Cada botelha, cada lata

Para o grande consumidor?

Que desejo de ver de perto

O inglês bebendo, o inglês comendo

Tamanho lote de comibebes.

Ele sozinho? Muitos ingleses

Surgem de pronto na mesa longa

Posta na serra. Comem calados.

Calados bebem, num só inglês.

Talvez um dia? Talvez. Na vez.

O poema de Carlos Drummond de Andrade foi lançado na década de 70 e é fruto de um “mergulho literário” na história de Minas Gerais e na memória de infância do autor.

A região de Itabira, lar do autor, é o cenário para sua composição, tendo a venda das minas locais aos britânicos como o início de uma nova era em que os ingleses vieram para habitar e trabalhar ali.

Frequentando a cidade e sendo considerados como possuidores de alguma riqueza, eles não se sentiam parte dela e eram encarados como estranhos. Estes versos são, então, uma alusão aos tempos coloniais, evocando a "invasão da terra".

O Poder do Papel

E tudo que pensei

E tudo que eu falei

E tudo que me contaram

Era papel.

E tudo que descobri

Amei

Detestei: papel.

Papel quanto havia em mim

E nos outros, papel!

De jornal, de embrulho.

Papel de papel, papelão!

A composição breve é como um relato das conquistas, experiências e história de vida de uma pessoa. É uma maneira de condensar sua trajetória em um único documento, que pode ser lido, escrito e criado com facilidade. Esta breve narrativa reflete um balanço da existência de um indivíduo, que é partilhado no fim da vida.

No entanto, os versos estão abertos a várias compreensões. Por exemplo, pode-se supor que a delicadeza do papel seja uma metáfora para a fugacidade e vulnerabilidade da existência humana.

A fim de concluir, pode-se dizer que todas as ideias e opiniões não passaram de "letra morta", já que não trouxeram resultados na prática, apenas ficando escritas em seus textos.

Mais sobre o assunto

Rebeca Fuks
Escrito por Rebeca Fuks

É graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), possui mestrado em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutorado em Estudos de Cultura pelas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).