Eça de Queirós - A Relíquia


Escrito por Sónia Cunha

Considerado um romance realista, A Relíquia foi escrito pelo português Eça de Queirós. O livro foi publicado originalmente em 1887 na cidade do Porto (Portugal).

Teodorico Raposo é o protagonista de uma obra extremamente sarcástica. Ele decide escrever um memorial para narrar suas experiências.

A história chegou ao Brasil, tendo sido publicada no jornal Gazeta de Notícias (1875-1942) em formato de folhetim.

No final da série, descobrimos que o vilão responsável por todas as maldades foi o próprio protagonista. No desfecho da série, descobrimos que o responsável por todos os maus feitos era o próprio protagonista.

Análise do livro A Relíquia

A Vida de Teodorico Raposo

Eu sou Teodorico Raposo, e este é o relato do que me tornou quem sou. A minha vida tem sido construída ao longo de trinta e três anos. Esta é a história da minha jornada. Eu, Teodorico Raposo, decidi narrar aquilo que fiz da minha existência. O livro começa comigo me apresentando: sou Teodorico Raposo, e este é o relato das experiências que me transformaram. Trinta e três anos de vida me levaram até aqui, e aqui está a minha jornada.

Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da minha vida - que neste século, tão consumindo pelas incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.

Teodorico Raposo, mais conhecido como Raposão, era neto de um padre. Porém, teve de se tornar órfão ainda na infância. Aos sete anos foi adotado por sua tia, D. Patrocínio das Neves, uma rica beata. Aos nove anos, ele foi encaminhado para um internato, onde conheceu Crispim, seu grande amigo e, posteriormente, seu cunhado.

Dividido entre a maneira como a tia desejava que Teodorico se comportasse e a sua verdadeira natureza, Raposão se ocupava alternadamente tanto com a diversão quanto com a oração.

A Juventude de Teodorico: Uma Retrospectiva

Terminada sua escolaridade, Teodorico se transferiu para Coimbra onde cursou Direito. Por lá, sua personalidade foi totalmente afirmada: Teodorico aproveitou cada momento com as mulheres, assim como grandes festas e bebedeiras.

Raposão voltava para Lisboa durante as férias, ansioso para ganhar o afeto da sua tia. Tinha medo de que, caso ela morresse, todos os seus bens fossem doados à Igreja. Assim, tentava convencê-la a todo custo de que, na verdade, era um bom homem.

A tia, que era muito devota, acreditava que as conquistas do sobrinho eram completamente de Deus, e o sobrinho simulava ter fé apenas para satisfazê-la.

Um dia enfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor metidas num canudo de lata. A Titi examinou-as reverente, achando um sabor eclesiástico As linhas em latim, às paramentosas fitas vermelhas, e ao selo dentro do seu relicário.

- Está bom, - disse ela - estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves; vê não lhe faltes...

Corri logo ao oratório, com o canudo na mão, agradecer ao Cristo de ouro o meu glorioso grau de bacharel.

Durante uma de suas viagens, o jovem se deparou com o seu primeiro grande amor, Adélia. Eles mantiveram uma relação intenso de amor.

Assim que terminou o curso e se estabeleceu definitivamente em Lisboa, Teodorico, querendo agradar a tia, fingiu ser profundamente religioso: ia à Igreja todos os dias, rezava, e levava uma vida de devoto aparente. Na realidade, porém, tudo não passava de um artifício para conseguir a herança da tia Titi.

A devoção excessiva de Raposão acabou afastando Adélia. Quando ela percebeu que não receberia mais a atenção de que estava acostumada, desistiu do rapaz. Notando o desânimo de seu sobrinho, sua tia sugeriu que ele fizesse uma viagem à Terra Santa.

Teodorico's Journey

Raposão, entusiasmado com a viagem, prometeu trazer de Jerusalém uma relíquia religiosa como presente de agradecimento à sua "patrocinadora".

Durante a sua viagem para Jerusalém, Raposão se encontrou com Topsius, um historiador alemão, em Alexandria, no Egito.

Durante aquele período, Raposão se divertiu muito com as festas e noitadas. Ele conheceu a inglesa Mary com quem teve uma relação passageira. Ao se despedirem - já que Teodorico precisava seguir para Jerusalém -, Mary entregou um presente para ele. O embrulho continha uma camisola sexy e um bilhetinho, uma lembrança dos dias alegres que passaram juntos.

A Busca pela Relíquia Sagrada na Terra Santa

Raposão partiu em sua jornada, mas mal podia dissimular o desdém que sentia por aquele lugar e por quem o habitava. Contudo, decidiu seguir em busca da relíquia ideal para sua tia.

Após ouvir o conselho de Topsius, o jovem encontrou uma árvore de onde haviam retirado a coroa de espinhos de Jesus Cristo. Seu plano era pegar um galho da árvore, modelar no formato da coroa de espinhos, embalar e presentear a tia. Acreditava que isso conquistaria o coração da senhora e lhe garantiria a herança que tanto desejava.

Recebendo a Relíquia

Teodorico embrulhou a relíquia da beata no mesmo papel que Mary tinha usado, e assim os dois presentes obtiveram uma aparência semelhante.

Em meio à bagunça dos embrulhos, Teodorico foi desmascarado quando a tia de Mary abriu o presente. Em vez da coroa de espinhos, ela encontrou uma camisola sensual. A imagem de santo de Teodorico então foi substituída pela de um devasso.

Teodorico na Avenida da Tristeza

Como consequência do deserdo, o rapaz foi obrigado a buscar meios de vida. Assim, para conseguir sobreviver, ele passou a vender relíquias falsas. Durante esse difícil período, o Raposão conheceu e passou a frequentar a irmã de Crispim.

Depois de se casarem, Raposão foi se estabelecendo na vida gradativamente.

Raposão parecia ter alcançado um nível de maturidade e entendimento ao longo de sua jornada, mas infelizmente todos esses esforços foram em vão quando sua tia faleceu e deixou toda sua herança para o Padre Negrão.

Furioso, Teodorico tentava se perguntar o que poderia ter feito diferente para realmente enganar a tia.

Examinando A Relíquia

Realismo e a Relíquia

A obra de Eça de Queirós, A Relíquia, é considerada parte do Realismo crítico e é situada na segunda fase da produção do autor. Dentre as obras também presentes nessa fase estão O crime do Padre Amaro e o Primo Basílio, ambas consideradas clássicas.

O Realismo se iniciou na França em 1856 com a publicação de Madame Bovary. Mais de trinta anos depois, seu legado ainda era sentido na publicação da obra A Relíquia, que ainda se encontrava ligada àquilo que se viu na literatura francesa de lá.

Eça de Queirós, considerado um dos grandes nomes do Realismo português, foi um dos cinco palestrantes convidados a proferir palestras na Conferência Democrática do Cassino Lisbonense. Ele foi o responsável por ministrar a quarta das cinco conferências.

Os intelectuais da época se reuniram para discutir e promover uma nova estética, que foi apresentada em dez palestras lideradas por importantes figuras da cultura. Porém, o governo, com medo dessas reuniões, proibiu-as e fechou o Cassino, alegando que elas eram uma conspiração contra as instituições e o Estado.

No discurso de Eça, destaca-se a intenção de transcender o Romantismo. A Relíquia é uma obra que representa essa vontade de deixar para trás as características românticas e avançar para novos estilos.

O homem é um resultado, uma conclusão e um procedimento das circunstâncias que o envolvem. Abaixo os heróis! (...) O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento: - o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.

Controvérsias entre Eça e Machado

A obra A Relíquia, de Eça de Queirós, se assemelha com As memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em diversos aspectos. Ambos os textos seguem a forma de narrativas memorialistas, caracterizadas pela presença de narradores maduros que analisam suas vidas passadas. Além disso, as histórias são permeadas por uma ironia peculiar a essa maneira de contar.

"Ele fala isso porque é desconhecedor de minha obra". O debate entre Machado de Assis e Eça de Queiroz quanto ao melhor escritor realista lusófono segue sem uma conclusão. Machado deixou claro que não tinha familiaridade com a obra de Eça ao criticar a publicação de Primo Basílio e O crime do Padre Amaro. Ao que Eça respondeu argumentando que ele tinha pouco conhecimento de sua obra. A questão permanece aberta, com ambos os autores com grandes contribuições para a literatura realista da língua portuguesa.

Devo dizer que os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l’Abbé Mouret, não tinham, infelizmente, lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, que foi, talvez, a origem de toda a sua glória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro. Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má-fé cínica poderiam assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama de uma alma mística, a O Crime do Padre Amaro, simples intriga de clérigos e de beatas, tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé de província portuguesa

Análise Social

No romance de Eça de A Relíquia, encontramos um questionamento dos valores conservadores e provincianos de Portugal. A Lisboa da época era influenciada pelos franceses e a síndrome do país periférico, que era ignorada pelas grandes nações, era usada como retrato para descrever a realidade da época.

O romance reflete de forma brilhante a cultura portuguesa do século XIX, onde eram comuns as máscaras sociais. O autor critica essa prática, retratando com ironia características individualizadas de seus personagens.

Interessante na obra é a análise dos nomes dos personagens principais: o nome da tia, D. Patrocínio das Neves, não é casual. A leitura do nome já faz entender que ela patrocinará a vida de Raposão. Já Teodorico tem o apelido Raposão, que remete à esperteza animal.

Análise Crítica da Igreja Católica

O romance "A Relíquia" contém várias críticas ao Catolicismo, tais como a hipocrisia e o moralismo exagerado prevalecentes na cultura portuguesa. Além disso, o autor cria um forte vínculo entre as obras e a Bíblia, refletindo características da sociedade na qual foi escrito.

A figura de Cristo, a quem o narrador chama de "intermediário", é intencionalmente "rebaixada" e dessacralizada, tendo suas características humanizadas. O filho de Deus passa a ter contornos cada vez mais próximos do ser humano comum, incluindo suas fraquezas e falhas, que poderiam ser encontradas em qualquer um de nós.

Neste romance, Dona Maria do Patrocínio é apresentada de forma detalhada. Ela é uma beata que cria Raposão e tem ações ambíguas.

A senhora tem uma ligação muito próxima com o padre, ambos se encontrando para jantar todas as semanas. Ela é extremamente devota, doando grande quantidade de dinheiro para a Igreja. Além disso, ainda que se identifique como extremamente castradora, possui um grande oratório em sua casa.

Na obra é feita uma crítica severa à venda de bens considerados sagrados para a Igreja. Em várias passagens, isso é mostrado com clareza.

- Ora aqui estão os cavalheiros diante do Santo Sepulcro... Fechei o meu guarda-chuva. Ao fundo de um adro, de lajes descoladas, erguia-se a fachada duma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como supérflua; a outra timidamente, medrosamente, entreaberta. (...) E imediatamente, um bando voraz de homens sórdidos envolveu-nos com alarido, oferecendo relíquias, rosários, cruzes, escapulários, bocadinhos de tábuas aplainadas por S. José, medalhas, bentinhos, frasquinhos de água do Jordão, círios, agnus-dei, litografias da Paixão, flores de papel feitas em Nazaré, pedras benzidas, caroços de azeitona do monte Olivete, e túnicas "como usava a Virgem Maria!" E à porta do sepulcro de Cristo, onde a titi me recomendara que entrasse de rastros, gemendo e rezando a coroa – tive de esmurrar um malandrão de barbas de ermita, que se dependurara na minha rabona, faminto, rábido, ganindo que lhe comprássemos boquilhas feitas de um pedaço da arca de Noé! – Irra, caramba, larga-me animal! E foi assim, praguejando, que me precipitei, com o guarda-chuva a pingar, dentro do santuário sublime onde a Cristandade guarda o túmulo do seu Cristo.

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Principais Personagens

O Rei Teodorico Raposo

Teodorico, conhecido como "Raposão", é o narrador da história. Ele é sobrinho de Dona Maria do Patrocínio e é um personagem extremamente complexo, que apresenta muitas facetas. Ao contrário de personagens planos, Teodorico é capaz de realizar o melhor e o pior e vai se descobrindo mais ao longo da trama.

A Senhora Maria do Patrocínio

Dona Patrocínio das Neves, apelidada também de Tia Patrocínio ou Titi é conhecida como uma beata da Igreja. Uma mulher religiosa e de grande fortuna, ela segue de forma rigorosa os ensinamentos do padre Negrão. Após a morte dos pais de Teodorico, Dona Maria aceitou o menino como sua responsabilidade. Ela se comprometeu a educar Teodorico bem, mandando-o para um internato e, posteriormente, para estudar Direito em Coimbra. Além disso, incentivava-o a frequentar a Igreja, a cumprir os rituais e orações.

O Crispim

Desde os tempos da escola, Crispim tinha uma grande amizade com Raposão. Quando o amigo se apaixonou pela irmã de Crispim, eles decidiram se casar, tornando-o então o cunhado do grande amigo.

A História de Adélia

Raposão conheceu Adélia durante uma visita à sua tia, em Lisboa. Ele estava de férias de Direito, em Coimbra. Apesar de gostar dela, Teodorico cedeu à pressão da tia e passou a segui-la à risca. Adélia ficou decepcionada e decidiu deixá-lo.

O Sucesso de Topsius

Topsius, um estudioso historiador de origem alemã, conheceu Raposão em Alexandria enquanto se dirigia a Jerusalém. Sua viagem foi contada em um livro, no qual Raposão foi identificado como "o ilustre fidalgo português".

Sra. Mary

Mary, uma inglesa, viveu dias tórridos de amor e volúpia ao lado de Raposão em Alexandria, antes de ele partir rumo à Terra Santa. Ela queria deixar uma lembrança para Teodorico, seu amante, e, por isso, preparou um embrulho contendo uma camisola sexy e um bilhete. Infelizmente, devido a uma confusão, o protagonista entregou o pacote de Mary para a tia, em vez de lhe entregar a coroa de espinhos que havia feito para ela.

Descubra na íntegra

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A Relíquia foi transformada em um audiobook para aqueles que preferem ouvir a história em vez de lê-la. O romance foi gravado em áudio para que todos possam desfrutar desta incrível obra.

Sónia Cunha
Escrito por Sónia Cunha

É licenciada em História, variante História da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2003) e em Conservação e Restauro pelo Instituto Politécnico de Tomar (2006). Ao longo da carreira profissional, exerceu vários cargos em diferentes áreas, como técnico superior de Conservação e Restauro, assistente a tempo parcial na UPT e professora de História do 3º ciclo e ensino secundário. A arte e as letras sempre foram a sua grande paixão.